Coluna

Quais os valores da “democracia liberal"?

Imagem de perfil do Colunistaesd
Os apoiadores do fundador do WikiLeaks, Julian Assange, pedem sua liberdade fora do tribunal Woolwich Crown, no sudeste de Londres. - Daniel Leal-Olivas/AFP
Democracia não segue apenas o modelo liberal, como o mercado pode existir fora do capitalismo

*Martonio Mont’Alverne Barreto Lima

Os reivindicados “valores da democracia liberal” constituem a base sobre a qual se pretende organizar a política mundial. Esses valores seriam: estado democrático de direito, eleições livres, igualdade de todos perante a lei, liberdade de imprensa e de manifestação de pensamento, livre mercado, propriedade privada, pluralismo político e transparência.

Qualquer outra forma de organização política que não incorpore referidos elementos não deve ser qualificada como democracia. A par da imensa discussão teórica sobre as formas possíveis de democracia, episódios concretos recentes põem em xeque os valores que principalmente democracias e democratas liberais defendem, mas convivem com enorme dificuldade de assimilar o que exigem dos outros.

Snowden e Assange

É escandaloso, por exemplo, que até hoje Edward Snowden não tenha recebido asilo de nenhum país da comunidade europeia, a mais ardorosa defensora dos valores liberais; aliás, valores fundantes da União Europeia.

Julian Assange amarga recolhimento em prisão de alta segurança de Belmarsh. Sua defesa insiste na tese de que não terá direito a julgamento justo nos Estrados Unidos.

Surpreende também que justiça do Reino Unido tanto demore para decidir sobre o caso, quando se sabe que o governo dos EUA excluiu, de seu pedido de indiciamento contra Assange, o vídeo que expôs os crimes de guerra no Iraque, uma das mais importantes revelações do fundador do WikiLeaks.

Não sem razão que do senador australiano, pelo Partido Verde da Tasmânia, Peter Whish Wilson, afirmou que não se surpreende com tal omissão: “não é do interesse do Governo dos EUA salientar as suas próprias injustiças, enganos e crimes de guerra”.

Supremacia ocidental

Em 21 de julho, a Comissão de Inteligência e Segurança do Parlamento do Reino Unido deu conhecimento público do seu Relatório sobre a Rússia.

Além da acusação de intromissão nas eleições americanas de 2016, a Rússia agora é acusada de intromissão cibernética no referendo da Escócia em 2014. Para o Relatório a inteligência do Reino Unido deveria investigar a mesma interferência na votação para o Brexit. Estados Unidos e Reino Unido acusam a Rússia do que tanto praticaram noutros países, econômica e militarmente, vulneráveis.

Entre muitos pontos do Relatório, chama a atenção o parágrafo 138, que transcrevo:

“A Rússia também tem procurado expandir sua influência no Oriente Médio. Apesar de concordarmos que a exploração pela Rússia do vácuo de poder na Síria foi "um dos maiores reveses" para a política externa britânica em 2018, ainda não consideramos que o Reino Unido tenha uma abordagem clara sobre esta questão. A Rússia vê sua intervenção de apoio ao regime de Assad como um sucesso, e é evidente que a sua presença na Síria apresenta ao Ocidente dificuldades em apoiar a paz na região." 

"As ligações crescentes da Rússia com o Irã, e as iniciativas comerciais com uma série de países da região do Golfo, complicam ainda mais a situação. Se o Governo de Sua Majestade pretende contribuir para a paz e segurança no Oriente Médio, a Comunidade de Inteligência deve ***, e o Reino Unido deve ter uma estratégia clara sobre a forma como isto deve ser abordado."

Em outras palavras, a presença diplomática e militar do Reino Unido e do Ocidente em regiões de seu interesse pode conduzir à paz; a presença diplomática e militar da Rússia não tem essa capacidade. 

Todos sabemos das dificuldades acumuladas das relações entre Europa e Rússia, especialmente as tentativas da Europa em eliminar a experiência comunista desde o fim da 1ª Guerra Mundial. A União Soviética, que amargou sozinha os piores sacrifícios contra o nazismo durante a maior parte da 2ª Guerra Mundial, não é reconhecida pelos aliados europeus até os dias atuais. 

O que se destaca deste amplo debate é a retórica de pretensão universal dos interesses do Ocidente. Que tal postura se distancia dos próprios valores que dizem defender, não parece restar dúvidas.

O desafio é enfrentar esta discussão com racionalidade e reconhecer finalmente que todos os povos têm direito à sua autodeterminação, e que as formas de democracia não se esgotam no modelo liberal, assim como a única forma de funcionamento do mercado não é aquela do capitalismo.

Recorrer à abstração dos valores da democracia como exclusivamente liberais consiste apenas numa tentação fácil de reafirmar que a história terminou, e de que não há alternativa fora do capitalismo. Como se tal fosse absoluta verdade.

*Martonio Mont'Alverne Barreto Lima é professor titular da Universidade de Fortaleza, procurador do Município de Fortaleza e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

Edição: Rodrigo Durão Coelho