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Enquanto nos cancelamos, Bolsonaro avança

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É no grito, na tomada de posição, na ocupação de terra improdutivas e de edifícios sem uso social, no dedo apontado na cara que muitas mudanças necessárias acontecem - Felipe Campos Melo
É típico do autoritarismo estranhar a divergência de ideias.

O Brasil ultrapassou os 90 mil mortos pela covid-19 essa semana. E, apesar do desgoverno durante a pandemia, uma pesquisa indicou que, caso a eleição fosse hoje, Jair Bolsonaro ganharia em segundo turno. É um dado desolador. Diante de tal catástrofe, contudo, o campo progressista parece ultimamente estar mais afeito a debater cancelamentos do que a disputar horizontes e saídas para a crise sanitária, política e econômica. Tudo que vi na timeline nos últimos dias foi relacionado a isso.

O que há algum tempo era novo, hoje é antigo

Penso que a disputa faz parte de um tipo de sociedade permanentemente questionadora que deveríamos almejar. Os debates sobre gênero, raça, sexualidade, geração, deficiência e padrões estéticos são importantes e, por mais que eles não pareçam produtivos, o são. Acessamos pontos de vista diferenciados, que não desenvolveríamos por conta própria em função das nossas experiências de vida limitadas como sujeitos.

Longe de indicar que o campo progressista é unitário, essas problematizações nos mostram que há uma pluralidade de indivíduos e movimentos que o compõem. É por meio de uma ou outra postagem que aprendo mais sobre minha branquitude, minha cisgeneridade, meu comportamento classe média. É por meio do estranhamento e, muitas vezes, de uma negação inicial que, posteriormente, questiono minhas escolhas, vejo outras possibilidades, faço autocrítica.

Quem se surpreende com tantas divergências no campo progressista é quem reduz esses debates à identidades fixas, como se feministas, negros e negras e LGBTQIA+ devessem ter uma voz uníssona. Isso é literalmente impossível. É típico do autoritarismo estranhar a divergência de ideias.

A política do cancelamento, cada vez mais frequente, segue o mesmo tipo de raciocínio totalizante: o veto a determinadas pessoas está diretamente relacionado a uma crença de que um indivíduo que não pensa como eu nunca poderá mudar de ideia. Promove-se a interdição do debate.

Com que roupa a esquerda vai?

Não estou aqui falando sobre tentar disputar o coração e a mente dos fascistas. Trato nesse texto sobre o campo progressista, que hoje é minoritário na sociedade brasileira. Tampouco quero adotar uma postura iludida, porque obviamente aqueles/as que estão em posições de poder – homens, brancos, cisgênero, heterossexuais – não irão facilmente cedê-las apenas porque foram convencidos/as por um ou outro argumento.

Sabemos que desde que esse território foi invadido, os privilégios que se materializam na vida cotidiana permanecem intactos. É no grito, na tomada de posição, na ocupação de terra improdutivas e de edifícios sem uso social, no dedo apontado na cara - ou no facão, no caso de Tuíra em 1989 contra a Eletronorte - que muitas mudanças necessárias acontecem.

Porém, para transformações estruturais é preciso que uma parte significativa da sociedade esteja convencida delas. E tal convencimento raramente acontece de uma hora para a outra: é nas trincheiras diárias de ideias, como são hoje as redes sociais, que os pensamentos antirracistas, antimachistas, antiLGBTfóbicos podem se espalhar.

Justamente por isso penso que se acreditarmos sinceramente na política de cancelamentos, não há transformação possível no mundo. Isso não quer dizer não debater. É preciso que continuemos nomeando as atitudes: racismo, machismo, lgbtfobia, gordofobia, etarismo, capacitismo, assim como todos os sentimentos que elas evocam – raiva, ódio, desconforto, desprezo etc. – mas sem interditar a possibilidade de transformação do outro quando isso for viável.

Edição: Rodrigo Durão Coelho