Rio Grande do Sul

MULHERES NA POLÍTICA

“O jornalismo é um ato político comprometido com a verdade dos fatos e com a ética”

Vera Daisy Barcellos, primeira mulher negra a presidir o Sindicato dos Jornalistas, destaca a importância da profissão

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Com uma longa militância no movimento negro, sendo uma das primeiras mulheres negras nas redações gaúchas, Vera Daisy hoje é presidenta do Sindjors - Claudio Fachel

A carreira da presidenta do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS, Vera Daisy Barcellos, começou em junho de 1971, mês e ano em que recebeu seu diploma da Faculdade de Jornalismo e Biblioteconomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ela é a segunda de cinco filhos da doméstica, doceira, lavadeira e mãe solteira Eva Barcellos. Com 71 anos, é casada com Ricardo Costa, mãe do Juliano e avó da Lívia, com dois anos. Como ela destaca na entrevista, “as mulheres negras têm este hábito de fortalecer suas histórias nominando seu mundo familiar, reverenciando aquelas que as antecederam e projetando o futuro nas crianças que se apresentam”.

Com uma longa militância no movimento negro, Vera Daisy iniciou sua caminhada entre as décadas de 1960 e 1970, em plena ditadura militar, integrando, inicialmente, o Grupo Palmares idealizado pelo professor Oliveira Silveira. Também foi fundadora e jornalista responsável da revista Tição, um marco na imprensa alternativa gaúcha focada na questão étnico-racial e com repercussão no cenário nacional e internacional no final dos anos de 1970.

Nas redações dos jornais comerciais, como o Jornal do Comércio e a Zero Hora, também foi pioneira, sendo das primeiras mulheres negras nas redações. Assim como, na história de 78 anos do Sindicato dos Jornalistas do RS é a primeira vez que uma mulher negra assume a presidência. “E de toda a minha carreira, este é um dos maiores desafios, principalmente pelo momento que estamos vivenciando devido à pandemia da covid-19 e, também, pelos ataques que os profissionais da comunicação vêm sofrendo por parte do governo federal”, afirma ela.

Na sua opinião, o jornalismo é um fazer e um ato político comprometido com a verdade dos fatos e com a responsabilidade ética de bem informar, ou seja, um exercício necessário para contrapor ao que hoje se apresenta, como fator negativo, devastador e nefasto, denominado fake news. “Focando na presença das mulheres na profissão, que quando do início da minha carreira era predominantemente masculina, pesquisas apontam que, atualmente, somos maioria nas redações”, aponta.

Mas, por outro lado, segundo Vera Daisy, mesmo que se perceba o crescente número de mulheres brancas nas redações, é sabido que as diferenças são gritantes em relação aos homens quando nos referimos aos salários, e no acesso aos cargos de chefia. “E, também, cabe observar que no exercício da profissão, muitas mulheres enfrentam o machismo no universo das redações, que se revela nos assédios moral e sexual, através de piadas, desrespeito e desqualificação profissional, nem sempre denunciados e que se configuram como casos de violência de gênero.”

Confira a íntegra da entrevista ao Especial Mulheres na Política.

Brasil de Fato RS – Nos conte um pouco da tua trajetória enquanto jornalista e militante.

Vera Daisy Barcellos - Minha carreira começa em junho de 1971, mês e ano que recebo meu diploma da Faculdade de Jornalismo e Biblioteconomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Sou a segunda de cinco filhos da doméstica, doceira, lavadeira e mãe solteira Eva Barcellos. Tenho 71 anos, sou casada com Ricardo Costa, mãe do Juliano e avó da Lívia, com dois anos. As mulheres negras têm este hábito de fortalecer suas histórias nominando seu mundo familiar, reverenciando aquelas que as antecederam e projetando o futuro nas crianças que se apresentam.

Destaco neste relato que a conquista do diploma universitário representou um simbólico voo libertário que culmina, atualmente, em estar a frente da presidência da Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul - gestão 2019-2022 - como a primeira mulher preta a ocupar este cargo numa história de 78 anos da entidade sindical. E de toda a minha carreira, este é um dos maiores desafios, principalmente pelo momento que estamos vivenciando devido à pandemia da covid-19 e, também, pelos ataques que os profissionais da comunicação vêm sofrendo por parte do governo federal. Há seis meses, em atuação home office, o Sindjors não parou, ao contrário, comprometido com seus associados/as e com todos jornalistas e, igualmente, estagiários dos cursos de comunicação, tem feito a luta de resistência, expandindo seus contatos com o Interior, respondendo demandas jurídicas e realizando cursos de formação virtual.

Minha trajetória de vida é marcada por diferentes atividades profissionais, tanto trabalhando para veículos de comunicação como em assessorias de imprensa, e em instituições da sociedade civil e divulgações sociais e culturais. Nos últimos 10 anos, estou à frente da assessoria de comunicação e da produção executiva do Puro Asthral, grupo de samba porto-alegrense que tem como proposta o fortalecimento da cultura musical de rua.

Ainda em minha militância sindical, registro a presidência da Comissão Estadual de Ética, do Sindjors e, igualmente, estive à frente da Comissão Nacional de Ética da Federação Nacional de Jornalistas – FENAJ, gestão 2016-2019.


Comissão Nacional de Ética com Audálio Dantas, Aloisio Morais, Carmen Pereira e Pinheiro Salles / Bel Clavelin

Mas foi entre as décadas de 1960 e 1970, em plena ditadura militar, que inicio minhas atividades no Movimento Negro gaúcho, integrando, inicialmente, o Grupo Palmares idealizado pelo professor Oliveira Silveira. Fui fundadora e jornalista responsável da revista Tição, um marco na imprensa alternativa gaúcha focada na questão étnico-racial e com repercussão no cenário nacional e internacional no final dos anos de 1970.

Exerci atividades jornalísticas no Jornal do Comércio, de Porto Alegre, em 1971. Trabalhei na área de comunicação da Legião Brasileira de Assistência/LBA, no período de 1975 a 1997. Integrei a equipe de jornalistas do Jornal Hoje, da RBS, em 1975, e estive por 16 anos (1976-1992) como repórter do jornal Zero Hora, realizando coberturas esportivas e carnavalescas.

Nascida em Porto Alegre, apostei um viver no interior do Estado. Fui repórter e editora no período de 1999 a 2005 do jornal A Voz da Serra, Erechim, no qual conquistei a menção honrosa do Prêmio de Jornalismo da Associação Riograndense de Imprensa - ARI com o caderno especial Erechim Mulher. Material esse revelador da participação das mulheres na construção e cultura do município da região do Alto Uruguai.

No período de 2006 a 2011, fui assessora de imprensa da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e consultora de comunicação da Campanha Ponto Final na Violência contra Mulheres e Meninas e do UNFPA – Fundo de População das Nações Unidas - ONU Brasil.

Como representante do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul integrei o Conselho Deliberativo da Fundação Cultural Piratini Televisão Educativa (TVE/FM Cultura); Conselho Deliberativo da Associação Riograndense de Imprensa (ARI), do Conselho Municipal de Políticas para o Povo Negro, do Conselho Estadual de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do RS (Codene). Sou militante do Movimento Feminista das Mulheres Negras e presidi o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (Comdim Porto Alegre), gestão 2014/2017 representando o Núcleo de Gênero e Diversidade do Sindjors.

Transitei pela literatura e participei como coautora dos livros Negro em Preto e Branco – História fotográfica da população negra de Porto Alegre (Prêmio Açorianos/2005); Colonos e Quilombolas - Memória fotográfica das colônias africanas de Porto Alegre e sou autora da publicação do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas - CEAP, do Rio de Janeiro, denominada Os Lanceiros Negros na Guerra dos Farrapos (1835-1845) que integrou a coleção Camélia da Liberdade/2012.

BdFRS – Jornalismo, também, é um espaço importante quando falamos de política (para muito além da questão partidária). Gostaríamos que nos falasse da importância da participação das mulheres no jornalismo. Conquistas, desafios, avanços, retrocessos.

Vera Daisy - Mais do que um espaço para falarmos de política, para além da partidária, o jornalismo, na minha opinião, é um fazer e um ato político comprometido com a verdade dos fatos e com a responsabilidade ética de bem informar, ou seja, um exercício necessário para contrapor ao que hoje se apresenta, como fator negativo, devastador e nefasto, denominado fake news.

Mas, focando na presença das mulheres na profissão, que quando do início da minha carreira era predominantemente masculina, pesquisas apontam que, atualmente, somos maioria nas redações. Mas as pesquisas também escancaram a maléfica chaga do racismo existente na sociedade brasileira que dificulta o acesso das profissionais negras, e, igualmente homens negros nos espaços formais midiáticos, em especial o televisivo.


Vera Daisy destaca que a "chaga do racismo existente na sociedade brasileira" dificulta o acesso das profissionais negras, e, igualmente homens negros nos espaços formais midiáticos / Claudio Fachel

Por outro lado, mesmo que se perceba o crescente número de mulheres brancas nas redações, é sabido que as diferenças são gritantes em relação aos homens quando nos referimos aos salários, e no acesso aos cargos de chefia. E, também, cabe observar que no exercício da profissão, muitas mulheres enfrentam o machismo no universo das redações, que se revela nos assédios moral e sexual, através de piadas, desrespeito e desqualificação profissional, nem sempre denunciados e que se configuram como casos de violência de gênero.

BdFRS – Como tu avalias que se manifesta o machismo e o racismo no espaço do jornalismo?

Vera Daisy - Eu costumo dizer, sem buscar indicadores técnicos e teóricos, que o machismo e o racismo são irmãos gêmeos na histórica da construção da sociedade brasileira estruturada nos 300 anos de vivência escravocrata. Na verdade, estes são dois fatores determinantes para o lugar hoje ocupado pela população negra e em especial as mulheres pretas. E se observarmos o comportamento da mídia tradicional brasileira, em sua maioria, é visível no dia a dia dos seus noticiários, para além da pandemia ora vivenciada, a exclusão das mulheres como fonte de diferentes pautas, em especial, aquelas consideradas de alto teor técnico. Ou seja, os veículos de comunicação, na maioria das vezes, não contribuem para a desconstrução do machismo e do racismo, reforçam as desigualdades e fortalecem os estereótipos.

A comprovação disso pode ser observada se nos dedicarmos a examinar as páginas das edições diárias dos jornais que circulam em Porto Alegre ou no centro do país, a ausência de vozes e pensamentos das mulheres como fonte principal, reforçando, assim penso, os estereótipos de gênero, raça, etnia. Um outro fato, corrente, já apontado na pergunta anterior e fruto de escuta entre colegas de profissão e de muitas pesquisas do campo da comunicação, as violências sofridas por nós, mulheres, que podem ser traduzidas na desqualificação do exercício das tarefas e, igualmente, o predomínio da superioridade masculina no fazer jornalismo, mesmo que ao longo do tempo se tenha rompido algumas barreiras, mas no decorrer deste tempo de quase 50 anos de profissão, elas ainda são predominantes.


"Os veículos de comunicação, na maioria das vezes, não contribuem para a desconstrução do machismo e do racismo, reforçam as desigualdades e fortalecem os estereótipos" / Arquivo pessoal

BdFRS - Recentemente tu participaste de uma live sobre Imprensa e Racismo na Rede Soberania/BdFRS, onde lembraste a importante história do jornal Tição. Nos conte mais desse momento importante da imprensa preta no nosso estado.

Vera Daisy - Posso dizer que a Tição – com dois exemplares no formato revista e dois exemplares, efetivamente, como jornal - hoje distanciado pelo tempo, foi um marco na imprensa gaúcha. E com um significado muito especial, diria um “valor” na minha vida profissional, considerando a jovem mulher que estava à frente desta iniciativa empresarial, como jornalista responsável e com o desafio de se apresentar aos censores da época, levando os textos da revista ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), prédio localizado na Avenida Paraná.

Estávamos em março de 1978 quando a revista Tição, que reunia um coletivo integrado por jornalistas negros e brancos, publicitários, historiadores, sociólogos entre outros profissionais, foi apresentada ao público gaúcho. A publicação distribuída nas bancas de revistas da Esquina Democrática e, igualmente, mão a mão, nasceu depois de quase dois anos de muita discussão teórica, políticas e cansativas.


Vera Daisy com seu amigo de quase cinco décadas e colega na revista Tição, Jones Lopes / Arquivo pessoal

Na capa tanto do número de estreia, como no segundo, em 1979, perpassa a atualidade das pautas hoje discutidas, tais como educação, trabalho, mulheres, a invisibilidade da história das lideranças negras. A revista ganhou o cenário brasileiro e o mundo revelado nas correspondências recebidas e solicitações de assinaturas.

Hoje distanciada do tempo deste projeto marco e pauta, constante, de teses universitárias, percebo que a Tição, mesmo com as dificuldades financeiras que foram responsáveis pelo seu fim, foi um instrumento significativo no fortalecimento da imprensa negra.

BdFRS - Sobre o papel da mídia quando falamos sobre racismo, muitas vezes parece que ela se dá pontualmente, como no caso do episódio envolvendo os EUA. Como avalias o racismo estrutural da mídia? Por que não avançamos?

Vera Daisy - Em outra pergunta, sem detalhar muito, eu me referia a histórica dificuldade da sociedade brasileira lidar com as questões de preconceito, racismo e discriminação racial e neste sentido a imprensa tem igual pensamento. Diariamente, aqui no Brasil, na “esquina ao lado” corpos negros de crianças e adolescentes são perfurados por armas policiais nas entradas e vielas das periferias e não ganham igual dimensão mediática dos veículos de imprensa do país dado ao caso internacional - a morte dolorosa do norte-americano George Floyd.

Qual a diferença da morte do cidadão negro americano para a criança ou adolescente negro brasileiro? A naturalização e a banalização da morte dos corpos negros brasileiros são reflexo, sim, do racismo institucional, quando estamos nos referindo aos organismos públicos, e estrutural aquele que permeia na sociedade brasileira que designa qual e quais os espaços para negras e negros. A mídia, e urge, tem que enxergar a diversidade da população do nosso país, considerando que o povo preto já é maioria e com potencial aquisitivo.


Com Angélica Basthi, da Cojira RJ, à esquerda, e Jeanice Dias Ramos: amizade há cinco décadas / Arquivo pessoal

BdFRS - Como acabar com a invisibilidade dos pensamentos e corpos negros?

Vera Daisy - A democratização da comunicação é o caminho! É preciso que projetos iguais a este do Brasil de Fato - abrindo espaços às diferentes e plurais vozes da população brasileira - se multipliquem, mas com uma visão que adote na prática jornalística a visibilidade e a variável da diversidade racial e étnica, bem como a de gênero, da nossa sociedade.

BdFRS - Vivemos sob um governo que faz ataques sistemáticos à democracia, à Imprensa. Qual deve ser nossa postura, enquanto jornalistas, diante disso?

Vera Daisy - Enquanto jornalista e com a representação do Sindjors, penso que duas palavras resumem esta pergunta: Enfrentamento e resistência. Mas não basta isto, é preciso que se crie, se organize e se coloque em prática novas ações, ou mesmo se renove aqueles velhos conceitos e atuações que foram abandonadas ao longo do tempo. Pode parecer utópico, mas eu quero o jornalismo de militância, penso ser possível, embora saiba que é uma tarefa insana...

A pandemia da covid-19 está forçando e demandando aos brasileiros e brasileiras novos fazeres e novos ordenamentos. Já o governo, frente a esta tragédia mundial, tem se mostrado inoperante, irresponsável e busca desestabilizar a imprensa não servil, desqualificando seus profissionais com o intuito de romper com o Estado democrático.


Vera Daisy com estudantes da ESPM em 2017: "Pode parecer utópico, mas eu quero o jornalismo de militância" / Karine Moura Vieira

BdFRS - Que sociedade deveríamos ter pós pandemia, ou que sociedade podemos esperar?

Vera Daisy - Fala-se muito num novo viver e numa sociedade mais solidária na pós-pandemia covid-19, eu, particularmente não acredito e estou cética quanto a isto, em face da sociedade forjada pelo capital neoliberal em que vivemos que acentua o estímulo à competição, norteia as relações humanas e sinaliza a sensível e imediata mudança nas relações trabalhistas nas quais a robótica será fator de influência no mercado de trabalho.

Fruto disso é que a marginal população de rua - homens e mulheres – cresce assustadoramente em nosso país, revivendo os “miseráveis” do romance clássico do escritor francês Victor Hugo, e renascendo nas impressões do autor do Admirável Mundo Novo (1932), o inglês Aldous Huxley, que antecipou o que será daqui a pouco; um mundo do viver cibernético.

Edição: Katia Marko