Coluna

Vidas brasileiras não importam

Imagem de perfil do Colunistaesd

Ouça o áudio:

Se persistia alguma dúvida sobre o abismo que afasta o Brasil de Bolsonaro da mínima noção de empatia pelo sofrimento humano, ela deixa de existir nesta semana. - Alex Pazuello / Fotos Públicas
Talvez por isso sejamos o país que mais mata quem vive para salvar vidas; não há paralelo no mundo.

Se persistia alguma dúvida sobre o abismo que afasta o Brasil de Bolsonaro da mínima noção de empatia pelo sofrimento humano, ela deixa de existir nesta semana. Não somente pela perda anunciada de 100 mil vidas e o dar de ombros de um gestor desprezível já denunciado ao Tribunal Penal Internacional. A miséria vai além.

Já na campanha de 2018, o bolsonarismo infectou irremediavelmente o ambiente político turbinando mentiras em volume industrial e espargindo ódio e ressentimento. O que continuou em 2019 e prossegue em 2020. Não é só uma gestão delirante mas todo um ecossistema de afetos em degradação.

Naturalizou-se a indiferença por um cotidiano depravado e caótico. Poucos se comovem com a sorte do próximo. Quando multidões se amontoam na praia, em bares ou festas não exercem só seu negacionismo. Elas estão gritando “azar de vocês!” Vocês, no caso, abarca desde o vizinho, o amigo, o colega, o parente até o porteiro do condomínio que junta uns trocados para reforçar a aposentadoria parca.

É a mesma coisa quando o patronato nativo – que ficará em home office -- brada pelo fim do isolamento e a volta ao serviço de seus trabalhadores mesmo com a curva da pandemia escalando o Everest.

Vidas brasileiras não importam desde sempre mas, agora, arrota-se essa desimportância. O desdém se converteu numa postura cultural, numa espécie de orgulho, um culto do narcisismo de talhe neofascista.

Mas pode pior. Pode ser uma política de extermínio como se suspeita esteja sendo movida, por ação ou inação, contra índios, negros, mulheres, LGBTs, sem terra, pacientes de hospitais psiquiátricos, presidiários, mendigos. E a sinalização que vem de Brasília acorda assassinos.

Em Itapevi, na Grande São Paulo, moradores de rua receberam marmitas com veneno de rato bondosamente misturado à comida. Morreram duas pessoas, um cachorro e um menino de 11 anos estava internado sem previsão de alta.

Somente no Rio, 78 pessoas foram alvejadas por balas perdidas em 2020. Treze morreram. Balas perdidas, como se sabe, costumam achar seus alvos nas comunidades mais carentes. Embora perdidas, possuem um admirável senso de direção para encontrar vítimas negras e, não raro, muito jovens. Vidas brasileiras não importam mesmo se forem de crianças, desde que pobres.

Importará um pouco mais se o assassinato for gravado. Por isso mesmo, um major da PM paulista recomendou em palestra aos novatos da corporação para evitarem o flagrante da barbárie. E justificou: “a PM faz isso (os abusos) há 188 anos e sempre vai fazer”. Aqui, os Georges Floyds são semanais.

Muitas vezes as balas perdidas se perdem após saírem dos fuzis das PMs. É um longo histórico exacerbado pelo bolsonarismo e por figuras afins, mesmo que hoje mais distantes, casos de João Dória e Wilson Witzel. O primeiro prometendo que sua polícia iria “atirar para matar”. O segundo sugerindo aos policiais “mirar na cabecinha”.

Na realidade, vidas de trabalhadores não importam. Talvez por isso sejamos o país que mais mata quem vive para salvar vidas. Até hoje, na contagem do Observatório da Enfermagem, morreram 325 enfermeiras e enfermeiros na batalha contra a covid-19.

Não há paralelo no mundo. Muitas delas e deles morreram por falta de equipamentos de proteção, de treinamento adequado, de condições de trabalho, de testagem e por negligência das autoridades sanitárias, sobretudo as federais. Que fizeram pouco caso da ameaça que se aproximava e do seu poder destruidor. Aprenderão a lição? Não é razoável qualquer otimismo quanto a isso.

Edição: Rodrigo Durão Coelho