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Aranha e o preço de denunciar o racismo no futebol: “Paguei com a minha carreira”

Em entrevista ao Brasil de Fato, o ex-goleiro lembra o jogo em que gremistas o xingaram de "macaco" e "preto fedido"

Ouça o áudio:

"Eu sabia que se não tivessem provas, eu ia me ferrar, porque eu conheço o futebol, eu sei como são as pessoas do futebol", afirma Aranha - JUAN MABROMATA / AFP
Eu sabia que teria consequência. Depois daquele ato, eu percebi uma má vontade comigo

O dia 28 de agosto de 2014 tem seu lugar na história do futebol brasileiro. Corria o minuto 42 do segundo tempo no Estádio Olímpio, em Porto Alegre, e o Santos vencia o Grêmio por 2 a 0, quando o goleiro Aranha corre na direção do árbitro Wilton Pereira Sampaio reclamando das ofensas racistas que vinham da arquibancada. Entre os 30 mil torcedores gremistas, uma parte estava em pé e gritava “macaco”.

Mesmo diante da revolta do goleiro, o árbitro decidiu seguir com a partida. Até os 51 minutos do segundo tempo, Mário Lúcio Duarte Costa, apelidado de Aranha, conviveu com gritos racistas e objetos que eram atirados da arquibancada em sua direção. Ao final da partida, o goleiro poderia falar sobre o jogo heroico que tinha acabado de realizar. Com defesas importantes, o santista parou o ataque adversário comandado pelo argentino Hernán Barcos. Porém, cercado por microfones, Aranha denunciou para o país o comportamento dos gremistas.

"A outra vez que viemos aqui jogar a Copa do Brasil tinha campanha contra racismo, não é à toa. Xingar, pegar no pé é normal. Agora me chamaram de 'preto fedido, seu preto, cambada de preto'. Estava me segurando. Quando começou o corinho com sons de macaco eu até pedi para o câmera filmar, eu fiquei puto. Quem joga aqui sabe, sempre tem racista no meio deles”, bradou Aranha.

Hoje, em entrevista ao Brasil de Fato, o goleiro lembra do episódio e não tem dúvida em afirmar que a reação ao racismo naquele dia antecipou o final de sua trajetória no futebol. “Por mais que eu estivesse concentrado no jogo, aquilo não saiu da minha mente. Então, eu decidi tomar aquela decisão e não me arrependo. Paguei com a minha carreira? Paguei. Me arrependo? Não.”

Para Aranha, se aquela denúncia não fosse acompanhada das imagens da televisão, sua versão corria riscos.

Eu sabia que se não tivessem provas, eu ia me ferrar, porque eu conheço o futebol, eu sei como são as pessoas do futebol. Existe um pensamento racista na elite do futebol, dos cartolas. Eu sabia que teria consequência. Depois daquele ato, eu percebi uma má vontade comigo.

Confira a entrevista:

Brasil de Fato: Como foi aquele dia 28 de agosto de 2014?

Aranha: As coisas foram acontecendo durante o jogo, era muita gente, tinha mais de 20 mil pessoas fazendo [gestos racistas]. É que gravou somente sete pessoas. Durante o primeiro tempo, eu fiquei pensando quais eram as consequências e atitudes, pensava que alguém tinha que filmar. Virei umas três vezes para os câmeras e pedia para filmar, mas eles não queriam se envolver naquilo.

Eu sabia que se não tivesse provas, eu ia me ferrar, porque conheço, sei como são as pessoas do futebol. Existe um pensamento racista na elite do futebol, dos cartolas. Sabia que teria consequência.

Depois daquele ato, eu percebi uma má vontade comigo. Depois que saí do Palmeiras, que é um clube de ponta no Brasil, eu tinha uma escada grande para descer ainda, vários clubes menores. Mas as portas começaram a fechar e nenhuma negociação ia para frente, vários clubes contratando, era uma loucura atrás de goleiro, porque perceberam a importância de um bom goleiro, 2 ou 3 pontos fazem diferença no rebaixamento.

Chegou a um ponto, que para contratar o Aranha, o time tinha que estar desesperado.

Não fosse o racismo, você teria jogado mais tempo?

Eu tinha 35 anos e era um jogo de muita proporção, com muita mídia. Quem me conhece sabe que eu sou atento com essas questões de racismo, eu não podia passar. Imagina meus amigos e familiares vendo aquela situação e me vendo acovardado.

Por mais que eu estivesse concentrado no jogo, aquilo não saiu da minha mente. Então, eu decidi tomar aquela decisão e não me arrependo. Paguei com a minha carreira? Paguei. Me arrependo? Não. É o que eu costumo falar quando o pessoal vem aqui em casa, tem um canto onde guardo os troféus, aí eu falo que meu troféu mais valioso é o que eu ganhei dos Direitos Humanos. Hoje, eu coloco a cabeça no travesseiro e penso que fiz uma coisa boa.

Quando começou sua aproximação com a luta contra o racismo?

Deve ter uns 23 anos. Quando era adolescente, eu tinha primos que formavam um grupo de rap, ensaiavam com um vidro de desodorante. Eu achava muito legal, aquilo de rimar, tentava também, mas não tinha talento nenhum para isso. Era legal como eles colocavam os dilemas da época em forma de música. Os discursos, aquilo que eles pregavam, era questão de autovalorização, não às drogas, correr atrás, estudar e principalmente tomar cuidado com o racismo.

Comecei a observar o mundo com outros olhos. Eu lembro que eu era jornaleiro e entregava jornal de madrugada, porque eu estudava de madrugada, começava umas 3h. Umas duas vezes, a viatura da polícia me parou, jogou os jornais no chão e me revistaram, porque eles achavam que eu estava roubando.

Então, ver um negro, com sacolas, de madrugada na rua, é crime. Eles nunca pensa que eu estava trabalhando. Essas coisas foram me despertando sobre o que é racismo.

Todas as leis que nos protegem são de 2000 para cá. O PT fez muita coisa errada, mas o que eles fizeram de bom foram as leis que protegem não só os negros, índios, homossexuais, deficientes, enfim. Então, faz 25 anos que eu estou nessa luta.

Como os jogadores de futebol lidam com sua negritude em espaços majoritariamente brancos?

Não é a questão de não se admitir negro,  do momento em que você está num lugar e se coloca como tal (negro). Você pode até estar em determinados lugares, desde que não crie um mal estar.

Eu sempre falo aqui em casa, que é muito difícil falar sobre racismo com uma pessoa branca sem magoá-la. O racista não tem preocupação em te magoar, mas se você for falar de racismo e privilégio, vai magoar a pessoa branca.

Eu percebia que quando eu chegava em determinados lugares, as pessoas ficavam incomodadas.

Embora seja um esporte protagonizado por negros no Brasil, o futebol não tem negros na sua elite diretiva, entre os presidentes e diretores de clubes. Por quê?

O negro sempre ocupou um lugar de mão de obra, é a força ou habilidade, parte intelectual não é para o negro. Por isso, leis que impediam o negro de estudar. No futebol, o negro é muito bom na força, usando a parte física dele em campo, já na parte intelectual, o pessoal não considera. O mais interessante é que fora do Brasil, muitas pessoas que são consideradas brancas aqui, lá não são consideradas brancas. Aí, o que acontece, os técnicos, mesmo brancos, são considerados intelectualmente inferiores.

Você é a favor da volta do futebol agora?

Esperamos que nossos governantes governem, digam o que devemos fazer, porém, o próprio governo está dividido. O ministro da Saúde disse que era para ficar em quarentena, mas o presidente fala que é para sair. Não temos uma posição oficial do que é para ser feito, cada um abre o comércio em um dia. O país está dividido e confuso, não podemos apontar o que é certo e errado, até porque não sabemos.

Em relação aos jogos, eu acho que é um antídoto para as pessoas que ficam em casa. Tem pessoas que precisam sair, tem as pessoas que não precisam, mas saem. Os jogos podem ser uma válvula de escape.

Edição: Rodrigo Durão Coelho