Rio Grande do Sul

Educação no campo

Educação fora dos centros urbanos do RS passa por dificuldades durante a pandemia

Educadores do campo e Interior relatam como tem sido lecionar em meio aos desafios impostos pelo novo coronavírus

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Para educadores do campo, o ensino vai para além do repasse de material
Para educadores do campo, o ensino vai para além do repasse de material - Foto: Olga Leiria/RBA

“Neste período é que sentimos a carência de uma escola equipada e que venha a fornecer o que realmente os educandos precisam para o complemento de sua aprendizagem. São questões que nos levam a uma profunda reflexão da crise da educação. Em um mundo com tanta tecnologia e informatização, nossas escolas não possuem aulas de informática e nem têm uma sala ou laboratório de informática”. O relato é da professora Cenira Hahn, da escola Chico Mendes, do assentamento Santa Elmira, no município de Hulha Negra. Com 410 km de distância da capital gaúcha, o município tem cerca de 6.521 habitantes. 

A escola Chico Mendes é uma das 609 escolas do campo no Rio Grande do Sul, de acordo dom o Censo/INEP de 2018, que desde a suspensão das aulas em março, em decorrência da pandemia e da adoção do ensino remoto em junho, vem driblando as dificuldades para levar ensino aos seus alunos. No estado há 54.415 alunos matriculados no campo.

Para os alunos que não conseguem acessar o ensino remoto, as escolas disponibilizam material impresso, onde as professoras e professores levam as atividades para as escolas. Em muitos casos, quando os pais não conseguem buscar o material, os professores vão até essas famílias. Há pais que vão a cavalo buscar as atividades.

“Infelizmente, o ensino remoto se resume a pegar um saquinho de atividades e entregar depois. Isso remete para o entendimento que a questão não é como se ensina remotamente, há questões profundas implicadas nesse debate, que extrapolam o âmbito da técnica do ensinar remoto. Além das desigualdades de acesso ao remoto, que reportam as desigualdades de reprodução da vida fora do ambiente escolar, a questão é que temos uma política pública que constitui uma não política nesses tempos de pandemia. Visto que uma política pública equaliza condições, orienta com certa normatização e investe os recursos necessários para a concretização, o que não ocorre”, salienta a docente no curso de Licenciatura em Educação do Campo e pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na Faculdade de Educação - Departamento de Estudos Básicos (FACED), Conceição Paludo. 

Dificuldades no acesso à internet no campo

Um dos problemas enfrentado nas escolas do campo é a carência de acesso à internet. “Uns conseguem acessar, outros acessam às vezes, outros não conseguem acessar. Ou por não terem internet ou terem apenas os dados móveis do telefone, e outros não conseguem acessar por não terem um equipamento, como celular, notebook ou algo semelhante”, expõe Cenira. 

“Sentir que o aluno tem interesse em estudar, mas não tem dinheiro para colocar créditos no telefone é algo que comove e desestabiliza todos os professores. E não é somente a falta de créditos o problema, muitos de nossos alunos moram em zona rural e o sinal das operadoras não cobre toda a cidade”, complementa o professor da rede pública estadual, da cidade de Triunfo, Nelson Jesus Essvein Gröhs. O docente iniciou a licenciatura em 2018, na Escola Estadual Nestor Vianna de Campos, escola do campo. Com a redução de turmas, foi transferido para a Escola Estadual Afonso Machado Coelho, no centro da cidade, onde leciona atualmente.

Nelson entende bem a realidade vivida pelos alunos. Formando do curso de Geografia da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), em EaD, a internet usada por ele é a de dados do celular. “Minha casa fica em uma região com muitas plantações de eucaliptos que impedem a chegada do sinal de celular de forma adequada”, explica. Para conversar com Nelson, a reportagem precisou contatar o celular de sua esposa, pois o dele serve como fonte de sinal de wireless, onde o aparelho fica pendurado na antena da TV por assinatura. 


Para ter sinal da internet, Nelson usa seu celular pessoal acoplado na antena da TV por assinatura / Arquivo Pessoal

De acordo com a Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nas Escolas Brasileiras (TIC Educação), de 2018, a qualidade de conexão é um dos maiores desafios para a efetivação de seu uso nas instituições rurais. Em 2018, as principais tecnologias de conexão à internet disponíveis nas escolas rurais eram cabo (24%), conexão via satélite (19%) ou rádio (12%), sendo que, na maior parte delas, a velocidade disponível era de, no máximo, 2 Mbps.

Para o Coletivo Estadual de Educação do Movimento Sem Terra (MST), a realidade do campo é de isolamento social sempre, onde não há estruturas para comportar sinais de internet que cheguem em todas as comunidades camponesas, nos assentamentos. “Quando se institui aulas por este meio, já se faz um recorte de quem terá acesso e de quem não terá acesso a estas atividades”.  

Segundo o coletivo, as famílias camponesas não estão com condições de fazer este investimento para ter a infraestrutura de computador ou telefone para que os filhos possam acessar as aulas. “Muitas famílias têm apenas um equipamento eletrônico e, em alguns casos, é mais de uma criança que precisa acessar a plataforma. É um período no qual se escancara o agravamento da negação do direito. Não é possível ter aulas remotas onde não se tem internet”, destaca. 

Desde o início da pandemia no RS, as escolas do campo em áreas de assentamento estão passando por diversas dificuldades com o processo da modalidade do ensino remoto. “Acirrou-se a exclusão dos trabalhadores nas escolas, e tornou mais evidente para a classe trabalhadora e os pobres do campo a negação do direito à educação e à escola de qualidade”, pontua o coletivo. 

Na avaliação da professora Conceição Paludo, o debate em torno do ensino na pandemia, muitas vezes, trata tudo como se fosse a mesma coisa. “Não parte da realidade, e mesmo quando parte, é unilateral, sem articulação da parte com o todo. Não faz a distinção rigorosa entre as escolas privadas e públicas. Nas públicas, não distingue as frequentadas pela classe média e remediadas, das frequentadas pelas que se localizam no campo e nas vilas e morros do nosso país. E há o desgaste profundo dos professores que, além do envolvimento próprio com a pandemia, salários parcelados, etc., devem dar conta, nesse contexto, do ensino”, afirma. 

Carga excessiva para professores e famílias

“Hoje me sinto prisioneira de um sistema que me entristece, pois passo praticamente o dia todo preparando aulas remotas, procurando a melhor maneira de transmitir o conhecimento. O primeiro e o maior desafio para mim neste período foi aprender a trabalhar, lecionar sem ter o contato direto com o educando, sem esta relação direta dos saberes”, desabafa Cenira, professora há 23 anos. 

Além de preparar as aulas, tanto as virtuais quanto para aqueles que não têm acesso, os docentes também necessitam auxiliar os estudantes nas dúvidas e, para além disso, dar conta de toda a exigência do estado, que aumentou a pressão, controle e exigência neste período de pandemia. 

“Um mês praticamente de aula presencial e tudo mudou. A direção, supervisão e professores tiveram que criar estratégias de acesso ao conhecimento através de materiais impressos e pelo Whatsapp no primeiro momento, chamado de aulas remotas. Tivemos que correr atrás do conhecimento das novas ferramentas para darmos início ao uso da plataforma. Confesso que tive vontade de desistir da profissão, novas angústias, trabalho excessivo, e também não só como professora, mas também como mãe. Tenho dois filhos em séries diferentes, me organizar para auxiliar um e depois o outro nas atividades atribuídas a eles, lembrando que tenho um notebook para nós três”, desabafa a professora da rede pública estadual Eliane de Souza Rangel. 


Para educadores o momento é de reflexão / Arquivo Pessoal

Professora há 18 anos, nos últimos seis anos Eliane tem lecionado na Escola Estadual de Ensino Fundamental Roseli Correa da Silva, no Assentamento Nova Santiago, interior da cidade de Capão do Cipó, a 530km da capital gaúcha e com uma população de 3.419 habitantes. Além lecionar na escola do Interior, ela mora na mesma localidade, em frente à escola. 

“Nós temos aulas síncronas e assíncronas. Nossas turmas são multisseriadas. Cada dois professores atendem em um dia da semana, mais ou menos uma hora, e o restante de forma assíncrona com atividades na plataforma. Vale ressaltar que estamos participando do Letramento Digital três vezes na semana e seminário três vezes na semana com duração de duas horas. Preparação de aulas para as assíncronas e encontro quinzenal online com colegas, direção e supervisão para o recebimento de orientações e compartilhamento do trabalho. Não esquecendo dos atendimentos pelo Whatsapp”, explica Eliane.

De acordo com ela, para dar apoio psicológico aos professores, foi criado o Programa União Faz à Vida (PUFV). “Fomos convidados a participar das lives que trataram temas a respeito das nossas angústias, medos enfrentados nessa pandemia e também o programa ficou à disposição para nos auxiliar nas práticas pedagógicas. A partir daí comecei a perceber que podemos implementar novas ideias e trabalhar juntos nas mudanças, encorajada a descobrir potenciais interessantes de uso para ensinar, sabemos o que fazer, somos criativos, fomos desafiados, mas creio que iremos sair muito mais fortes dessa situação”, opina. 

Na cidade de Progresso, a 150 km de Porto Alegre, e com uma população com um pouco mais de seis mil habitantes, leciona a professora Elita Maribela Xavier Borges. Docente da rede municipal e estadual, ela atesta o aumento na carga de trabalho. Segundo ela, se antes tinha que preparar e dar as aulas, agora os professores também precisam ter aulas para dominar a tecnologia. 

“Antes da pandemia tínhamos uma vida muito boa, o contato com o aluno no dia a dia, aquele abraço ou um aperto de mão. Agora isso não é mais possível, com o distanciamento social, as dificuldades em lidar com a nova realidade e o esforço pessoal para transmitir os conhecimentos aos alunos. Nós professores também estamos passando por um sufoco com a tal tecnologia, pois, de um dia para outro, nossa vida mudou radicalmente. Precisamos lidar com a pressão de nos adaptarmos às ferramentas virtuais, preparar atividades que mantenham os alunos estimulados e, ao mesmo tempo, estar disponíveis para esclarecer as dúvidas dos alunos, mesmo sabendo que para nós também não é fácil”, relata a professora, que leciona há 23 anos. Atualmente sua carga de trabalho é de 40 horas. 

Outro fator apontado pela professora Cenira Hahn diz respeito à relação e sobrecarga das famílias. “Temos famílias com pouco conhecimento letrado e que estão enfrentando dificuldades em auxiliar seus filhos, percebemos com isso um aumento de estresse e de desentendimentos familiares. O que está acontecendo é uma sobrecarga para a família. Tendo em vista que a escola é de campo e as atividades do campo permanecem, como tirar leite, planta, colher, cuidar dos animais, muitas famílias reclamam da falta de tempo para ajudar nas tarefas da escola ou por não terem paciência, ainda por não saberem para ensinar”, detalha.

Para além do repasse de material 


Comunidade mantêm projetos ativos em andamento / Arquivo Pessoal

Com um conceito de aula que vai além do repasse de conteúdo, muitas escolas do campo e Interior, apesar de estarem praticamente paradas, mantém projetos ativos. Como o caso da manutenção da nascente e a construção da cisterna da Escola Chico Mendes, em Hulha Negra. “A continuidade da agrofloresta e do pomar, o início do horto e a manutenção da horta estão em andamento, pois precisamos mostrar aos nossos educandos que eles são as partes principais nesta engrenagem. Precisamos mostrar para a sociedade que apesar das inúmeras dificuldades enfrentadas neste período, a escola do campo tem o seu valor. Os projetos desenvolvidos estão ativos com o apoio da juventude que, organizada, se dispôs, com os cuidados necessários, a nos ajudar neste período”, pontua Cenira.

Conforme ressalta a professora Conceição Paludo, o papel do Estado deveria ser o de prover, nesse momento, condições de reprodução da vida com o menor sofrimento possível. “Ações intersetoriais, por exemplo, entre Saúde, Educação e Assistência Social deveriam ser potencializadas, para os mais de 50 milhões de brasileiros que estão desprovidos nesse momento”, opina. 
  
Para o coletivo de educação do MST, sem a vacina não pode haver volta às aulas presenciais. Assim como ampliar o debate com toda a comunidade escolar para que se apropriem do caos na aprendizagem das crianças, adolescentes jovens e adultos, que vão sofrer na validação do ano letivo. E ampliar a denúncia da intensificação do processo de exclusão dos povos do campo ao acesso à educação. “Queremos construir uma campanha em defesa da vida, dos direitos de estudar e de trabalhar com dignidade”, finaliza.

Edição: Marcelo Ferreira