Paraíba

RAÍZES DO RACISMO

Insensibilidade social e miopia histórica forjam a ideia de democracia racial

Aos pretos, a senzala, o tronco, o açoite; aos brancos italianos, casa, salário, escola

Brasil de Fato | João Pessoa - PB |
Reprodução - Foto: Agência Brasil

*Por Sebastião Costa 

Um mundo sociologicamente dividido pela teoria “culturalista,” consolidada no pós-segunda guerra pela supremacia americana, com o protestantismo individualista emitindo as linhas para a construção de uma sociedade rica, democrática. Essa teoria põe de um lado os países ricos, desenvolvidos, superiores; e, lá  abaixo da linha do Equador, nações pobres, subdesenvolvidas, inferiores.

Esta dicotomia, fale-se a pura verdade, já foi bem mais perversa. Superiores eram os brancos que colonizavam e escravizavam os negros. A cor da pele era o único pré-requisito a definir os padrões de superioridade entre as nações. Teoria conhecida nas ciências sociais como “racista” e que predominou até a década de 1920.

Junte-se aí o estigma, o violento preconceito de uma sociedade de mentalidade profundamente escravocrata, e os “libertos” forçados a se acomodarem como párias dentro da nova estruturação social do país

Uma breve visita ao século XIX e entendemos melhor essa perversidade: arrancados do aconchego da família, da convivência social, de sua interação religiosa e jogados nos porões infectos dos navios. Dos que sobreviviam à fome, ao açoite, à humilhação, eram atirados às roças dos senhores, ao chicote dos feitores. Na fuga, em busca de liberdade, se deparavam com o mosquetão do capitão do mato, com o tronco da senzala.

Quando abolidos (os últimos a serem abolidos) foram jogados nas sarjetas da rua. Seus donos, recompensados com o dinheiro público. Aos pretos, a senzala, o tronco, o açoite; aos brancos italianos que aqui chegaram para compensar o vazio da mão-de-obra, casa, salário, escola.

Bilac, “poetizando” seus sentimentos de uma era que ele viu, viveu e sofreu: “Virgens violadas em pranto, homens assados lentamente em fornos de cal, mulheres nuas recebendo na sua mísera nudez desvalida, o duplo ultraje das chicotadas e dos olhares do feitor bestial”.

No ocaso daquele século, a abolição da escravatura e as ebulições econômico-sociais produziram profundas transformações no país.  O Brasil estava em pleno processo de urbanização e os ex-escravos, analfabetos, restritos a sua prática rural, sem condições de competir com os milhões de imigrantes brancos que invadiram o sul/sudeste.  Junte-se aí o estigma, o violento preconceito de uma sociedade de mentalidade profundamente escravocrata, e os “libertos” forçados a se acomodarem como párias dentro da nova estruturação social do país, forjados a se amontoarem em guetos periféricos.

Para o sociólogo Jessé Souza, a “ralé brasileira”, uma classe “eternamente” condenada a ser a "escória proletária, ao ócio dissimulado, à criminalidade fortuita ou permanente...”

E o que mudou da abolição no século XIX à democracia no século XXI? Um olhar mais sensível ao Brasil atual e vão-se enxergar muitos discursos, muitas leis e muitos atos, sem desatar o nó do racismo, entranhado nas escolas, nas instituições, nas ruas. E os descendentes daqueles que foram chicoteados no tronco habitando morros e favelas, superlotando presídios, perfurados por balas do poder público.

Aos pretos, a senzala, o tronco, o açoite; aos brancos italianos que aqui chegaram para compensar o vazio da mão-de-obra, casa, salário, escola.

Enquanto isso, a insensibilidade social, o analfabetismo sociológico em conluio com a miopia histórica, querendo forjar a ideia de que vivemos numa democracia racial.

*Sebastião Costa - Médico

 


 

Edição: Henrique Medeiros e Cida Alves