Xodó da Alcione

Destaque no Masterchef, arroz de cuxá maranhense tem raízes africanas

Comissão de Folclore defende há mais de dez anos que o cuxá seja registrado como bem imaterial do estado

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Com influências africanas, indígenas, árabes e portuguesas, a receita é única no MA. - Júlia Araújo
Prato é resultado de cultura africana, indígena, portuguesa e árabe

Entre ladeiras e escadarias, homens e meninos percorrem os casarões do centro histórico de São Luís (MA), com panelas de cuxá e peixe frito sobre a cabeça. 

Assim era vendida a pasta produzida pela vinagreira, que recebe o nome popular de cuxá em razão de uma das suas origens, a africana.

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Na língua mandinga, falada na Guiné, o termo Kutxá significa quiabo-de-angola ou vinagreira. As negras escravizadas trazidas da região de Guiné, na metade do século XVIII, também abasteciam as mesas de famílias portuguesas com pratos feitos à base do cuxá, entre eles o mais popular: arroz de cuxá. 

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O prato foi destaque no episódio da terça-feira (18), no programa Masterchef, atendendo ao pedido da cantora maranhense Alcione. “O meu prato preferido só existe em São Luís do Maranhão [...] não tem melhor. Só comer e pedir perdão para Deus”, disse ela. No mesmo instante, maranhenses vibraram nas redes sociais, mas logo se desapontaram ao perceber que os cozinheiros não sabiam executar o prato típico. 

Feito de vinagreira cozida e refogada com cebolinha, tomate, gergelim, camarão seco, farinha seca e outros temperos, se torna uma mistura de influências das culinárias africanas, indígenas e portuguesas, com toques árabes do arroz e do gergelim. E assim como pedido pela cantora Alcione, em geral, é servido como acompanhamento para mariscos e peixes, motivo que o leva a ser mais consumido no litoral do estado.  


A avó do chefe Gopa Kumara fazia a receita nos tradicionais pilões de madeira. / Júlia Araújo

O chefe maranhense Gopa Kumara, especializado em culinária vegetariana, aposta na receita como uma das mais versáteis e nutritivas da culinária do Maranhão, apesar de ele não utilizar o tradicional camarão seco. Ele esclarece que o prato típico é uma mistura de duas receitas que conversam entre si, mas também são consumidas separadas, o cuxá e o arroz de cuxá. 

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"Existe o cuxá, que é uma pasta feita à base da folha de vinagreira e existe o arroz de cuxá, que é a mistura do arroz com esse cuxá. O cuxá tem como um dos ingredientes principais a nossa vinagreira, uma mistura que tem ligações com algumas culturas de outros países, como árabe, portuguesa e africana."

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O cuxá é destaque em vários pratos do cardápio maranhense na Feira do MST, em SP. / Mariana Castro

Cuxá

De acordo com Sebastião Cardoso Júnior, antropólogo e gestor de comunidades tradicionais de matrizes africanas e povos ciganos da Secretaria Extraordinária de Igualdade Racial do Maranhão (SEIR), o cuxá ganha ainda mais destaque no estado durante a semana santa, em razão da tradição católica dos colonizadores portugueses de comer peixes e mariscos e também em alguns cultos de matriz africana. 

"É também uma mistura da nossa matriz africana com a indígena, mas também é utilizada em algumas casas de culto. Não tem uma comida específica para os orixás, mas se usa também nesse período, e normalmente o cuxá é servido com arroz branco e acompanhado de torta de camarão, torta de caranguejo, o peixe frito em si", explica Sebastião.  

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A pesquisadora e membro da Comissão Maranhense de Folclore (CMF) Zelinda Lima, hoje aos 94 anos de idade, há mais de dez anos defende com firmeza que o cuxá seja certificado como bem cultural imaterial do estado.

A solicitação foi feita ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), órgão federal, ainda durante sua participação ativa na Comissão Maranhense de Folclore e divulgada no Boletim nº 38 do órgão, em 2007 e teve seu registro indeferido, por falta de fundamentação da proposição sobre as referências culturais, conforme o Decreto 3.551/2000 e o artigo 216 da Constituição Federal, que tratam da instituição de bens culturais. 

“Pleiteamos o registro como bem cultural imaterial, porque não se trata tão somente de um acepipe comum da culinária maranhense, é nosso retrato, nossa cara, nossa identidade, resultante do caldeamento indígena, português e africano nesta parte do Brasil, entre a Amazônia e o Nordeste, participante de ambos e tão diferente”.

De acordo com Neto Azile, superintendente de Patrimônio Imaterial da Secretaria de Estado de Cultura (SECMA), apesar de ser um bem tradicional de culinária maranhense que poderia ter o registro solicitado, não há pedido formalizado no órgão estadual até então.

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Ele explica que para isso é necessário formalizar um pedido ao secretário, que envia ao departamento de patrimônio imaterial para que analise os argumentos que justifiquem o pedido. Caso o pedido seja procedente, é aberto um processo de registro, que vai desde pesquisas iniciais até a elaboração de um dossiê do bem a ser julgado.

Apesar disso, a paixão dos maranhenses pelo cuxá já está registrada em versos e músicas. Bem longe das terras ludovicenses, o poeta maranhense Arthur Azevedo fez do seu lamento de saudade, poesia. 

“Eu tenho muitas saudades / Da minha terra querida…

/ Onde atravessei a vida / O melhor tempo foi lá. /

Choro os folguedos da infância / E os sonhos da adolescência; / 

Mas… choro com mais frequência / O meu arroz de cuxá”
 

Edição: Leandro Melito