Coluna

Por que a ABJD denunciou Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional?

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Se toda legislação federal não bastasse, é importante destacar que, na República Federativa do Brasil, a saúde é uma competição concorrente entre a União, os Estados e os Municípios - Marcos Corrêa/PR
O Brasil tem sido um dos mais representativos casos de desobediência e afronta à ciência e à ONU

Por Carol Proner*

 

I. Denuncia da ABJD

A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia - ABJD, por meio de seus procuradores, protocolou junto ao  Tribunal Penal Internacional (TPI) no dia 3 de abril de 2020 a primeira denúncia tratando do comportamento do Sr. Jair Messias Bolsonaro, Presidente da República, pela gestão da crise da Covid-19. Recentemente, no dia 12 de agosto, foi protocolado um memorando adicional assinado pela ABJD e outras 223 organizações civis brasileiras, atualizando as condutas pessoais do Presidente e o número de mortes, que já superam os 100 mil. Até 12 de agosto, dezesseis novos episódios demonstram a conduta delitiva reiterada do Mandatário, flagrante e sistematicamente minimizando a gravidade da pandemia, e desafiando as normas e recomendações de saúde pública.

A denúncia reclama a aplicação do artigo 7 1 k do Estatuto de Roma, em complementaridade às condutas delitivas previstas na legislação interna: artigos 267 e 268 do Código Penal Brasileiro Código [ver box], e artigo 7º da Lei de Crimes Hediondos do Brasil.

II. Afronta à legislação nacional e aos parâmetros internacionais

Formas de ataque químico e bacteriológico afetaram indiscriminadamente populações após a Primeira Guerra. Dadas suas trágicas consequências, foram proibidas pelo Protocolo de Genebra de 1925, inibindo a reincidência do uso das armas químicas durante a Segunda Guerra Mundial. Causar ou contribuir para uma epidemia por intermédio de propagação de germes patogênicos é conduta estritamente proibida pelo direito internacional público, por seu potencial destrutivo indiscriminado.

Na legislação brasileira, a conduta está prevista no artigo 267 do Código Penal e, dada a extrema gravidade, inserida entre os crimes hediondos (Lei nº 8.072, de 1990). A denúncia enfrenta os quesitos de admissibilidade junto ao TPI, incluindo o relativo ao esgotamento dos recursos internos, dado o posicionamento do Procurador Geral da República e a condição especialíssima do denunciado, o próprio Presidente da República.

Epidemias que vitimaram milhões de pessoas no passado transformaram-se em tragédias globais quando mandatários ou responsáveis deixaram de adotar medidas de salvaguarda e proteção. Na maior parte das vezes, as tragédias estavam justificadas pelo desconhecimento científico, mas no caso da pandemia da Covid-19, a ciência do século XXI não permite essa alegação. Tanto as formas de propagação e contágio como as medidas eficazes de proteção têm sido estudadas pelas maiores autoridades em saúde pública do mundo, pesquisadas e compartilhadas amplamente para que governos planifiquem suas ações e preservem vidas. Importante ressaltar que o Sars-Cov2 é considerado uma “ameaça global” e, por seus efeitos e saldo em vidas, equivale à tragédias bélicas de grande proporção. O vírus pandêmico ameaça a vida, a integridade física e desafia a cooperação global, atualmente regulada em torno da Organização Mundial de Saúde - OMS.

O Brasil tem sido um dos mais representativos casos de desobediência e afronta à ciência e à Organização das Nações Unidas (ONU). E o comportamento pessoal do Sr. Jair Messias Bolsonaro, o máximo Mandatário do país, contraria recomendações da OMS e minimiza os efeitos da pandemia, provocando consequências diretas e incalculáveis à propagação ou à incidência de contaminação da doença. Não são poucas as autoridades públicas que comparam os efeitos no Brasil ao de um “genocídio”, provocados especialmente pela conduta pessoal do Chefe de Estado em minimizar a gravidade da doença e estimular o descaso com a proteção.

Os atos reiterados do Presidente da República, descritos em detalhes tanto no petitório como no documento de atualização, demonstram a afronta pessoal à legislação geral e específica. Violam o Decreto do Distrito Federal quanto ao uso de máscara e comportamento em tempos de Covid-19, incidem na violação do artigo 268 do Código Penal quanto às medidas preventivas de saúde [ver box]. Vale destacar a afronta do Presidente à Lei nº 13.979 de 6 de fevereiro, aprovada com urgência no Congresso Nacional para tratar especificamente do impacto do Covid-19 na vida dos cidadãos, fazendo prever, no art. 3º, a determinação de medidas como isolamento, quarentena e exames médicos obrigatórios.

Soma-se a isso, em 17 de março de 2020, a Portaria Interministerial nº 5, que determina, em seus artigos 3º e 4º, que o não cumprimento das medidas de isolamento e quarentena, bem como a resistência a exames médicos, exames laboratoriais e tratamentos médicos específicos, acarreta punição com base nos arts. 268 e 330 do Código Penal. Este último codifica o crime de desobediência, que consiste na “desobediência à ordem judicial do servidor público”, cuja pena é de reclusão, de quinze dias a seis meses, e multa. De acordo com o sistema legal recente, a conduta resultante da pandemia Covid-19 é punível de acordo com o art. 268 Código Penal quando houver não conformidade.

Se todo o arcabouço jurídico da própria legislação federal não bastasse, é importante destacar que, na República Federativa do Brasil, a saúde é uma competição concorrente entre a União, os Estados e os Municípios. Assim, o Decreto nº 40.550, de 23 de março de 2020, do Governo do Distrito Federal, que dispõe sobre medidas de atendimento à emergência de saúde pública, de importância internacional, derivada do novo coronavírus, deve ser cumprido por todos os cidadãos, inclusive o Presidente da República. No entanto, fica claro que Bolsonaro se considera isento do Estado de Direito e nenhum funcionário do judiciário brasileiro está disposto a responsabilizá-lo.

III. Expectativas da entidade – litigância humanitária estratégica

A principal expectativa da ABJD é a do reconhecimento da petição e aceitação da competência para apurar a prática de crimes contra a humanidade pelo Sr. Jair Messias Bolsonaro, Presidente da República, por expor a vida de cidadãos brasileiros, com ações que têm contribuído para acelerar a proliferação da Covid-19. Especificamente, o pedido também incluiu que o TPI convoque o denunciado para depoimento pessoal para que esclareça as condutas denunciadas.

No sentido de litígio estratégico, considerando que o Tribunal jamais acolheu investigação desta natureza, não faltam motivos para que o órgão possa aquiescer investigações a respeito de novas modalidades de violação massiva de Direito Humanos, com consequências equivalentes à de crimes já considerados pelo Órgão. Como em outros momento da história do direito penal internacional, frequentemente as condutas de mando/comando que provocaram graves consequências humanitárias foram responsabilizadas a posteriori, sem a existência prévia dos contornos específicos de tipificação. Mesmo de contornos imprecisos, não há como afastar a principiologia que repudia condutas desumanas quando outros elementos preenchem o dever de cuidar e preservar vidas.

O descaso doloso de um governante diante de uma população de mais de 200 milhões de habitantes amplia a mortalidade da doença, contribui para o alastramento da epidemia e efetivamente produz o nexo de responsabilização. A ONU, por intermédio de experts em subcomitês específicos, prepara informe a respeito do Brasil e inclui a gestão do país em relação ao Covid-19. Nos bastidores, o Brasil passa a ser considerado uma “ameaça global” pelo comportamento irresponsável e nada cooperativo.

*Carol Proner é integrante da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia. Advogada. Doutora em Direito Internacional. Professora da UFRJ. Diretora do Instituto Joaquín Herrera Flores -AL.

Edição: Rodrigo Durão Coelho