Disputa

Reforma judicial argentina: polarização com a direita e falta de consenso na esquerda

Mudança proposta por governo Fernández busca solução aos processos de lawfare; direita denuncia tentativa de impunidade

Brasil de Fato | Buenos Aires (Argentina) |
O presidente argentino, Alberto Fernández, no anúncio da reforma judicial; enquanto aguarda data para ser tratado na Câmara dos Deputados, o projeto gera polarização e disputa de narrativas - Reprodução

O projeto que visa uma reforma judicial na Argentina tem sido mais um motivo de polarização, marcada por protestos da direita e fortes discursos midiáticos contra o governo do presidente Alberto Fernández (Frente de Todos), além de uma ausência de consenso na esquerda do país.

Já aprovada pelo Senado, em votação de mais de 10h no último dia 28, a proposta intitulada "Lei de Organização e Competência da Justiça Federal" estabelece um prazo de dois anos para a sua concretização.

O texto prevê mais cargos para juízes e procuradores, com o objetivo de ampliar a atuação de tribunais federais em todo o país. Além disso estabelece o sorteio manual de juízes responsáveis pelos processos e determina que o concurso para juízes e procuradores que ocuparão os novos cargos terá prova escrita, também gravada, e deverá contar com 60% de aprovação.

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No Senado, os argumentos contra e a favor da reforma ilustram o embate atual: por um lado, quer ampliar o número de tribunais e funcionários para agilizar os processos e descentralizar o Poder Judiciário; por outro, a oposição afirma que se trataria de uma estratégia para livrar os políticos do kirchnerismo dos processos que enfrentam, incluindo a própria vice-presidenta argentina, Cristina Kirchner.

Apesar deste último argumento não encontrar qualquer ponto que o justifique no projeto de lei, é a narrativa que ganha os meios e motiva o lema das manifestações da direita contra a reforma.

Já no setor progressista, não há um grande consenso sobre os moldes da reforma, que não tocaria no problema de fundo do atual sistema: uma minoria – de classe privilegiada que não representa a classe trabalhadora e não são escolhidos por voto popular – define o que seria a Justiça no país. O que está em xeque, nesse sentido, é o papel do Poder Judiciário na sociedade e quem ele realmente representa.

A mídia marca a agenda

O governo do direitista Mauricio Macri (2015-2019) foi tido como marcado pela perseguição de opositores, com o uso dos serviços de inteligência, do aparato judicial e, também, da mídia. O esquema de sorteio dos processos era, então, digital, e beneficiava sempre aos mesmos juízes.

Em uma recente entrevista ao canal C5N, o atual presidente, Alberto Fernández, que ganhou de Macri no último pleito, afirmou que pretende, com essa reforma, acabar com as prisões preventivas aplicadas como penas adiantadas, "para calar opositores".

"A oposição deveria votar a favor dessa lei sem duvidar. Porque é a melhor garantia que eles têm de que não faremos com eles o que eles fizeram conosco."

Presidente Alberto Fernández

Para Gustavo Franquet, advogado da Gremial de Advogados da República Argentina, reformas judiciais no país já foram propostas por outros governos, e que, neste momento, o que teme a oposição é ver afetados seus interesses com a gestão peronista.

"A maioria dos juízes federais se acomoda a cada governo e não apresentam nenhum tipo de inconveniente a atuar com os serviços de inteligência. O problema dos que estão agora na oposição é que sabem disso."

Em um paralelo com o uso do aparato jurídico em processos políticos importantes que resultaram em ataques à esquerda – como no últio golpe na Bolívia, contra o mandato de Evo Morales, e no Brasil, com a prisão e perseguição contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a pesquisadora e integrante do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (Celag), Silvina Romano, resgata o conceito de lawfare, ou guerra jurídica. Segundo ela, isso consiste em um jogo de ações aparentemente legais, no qual a mídia cumpre um papel fundamental.

"O Poder Judiciário tem aparecido sistematicamente nos meios de comunicação. Os juízes ficam famosos – vide o caso de Sérgio Moro, no Brasil", aponta Romano. "É interessante pensar isso: como conseguiram conectar o Poder Judiciário com a população? Através dos meios de comunicação massivos."

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Enquanto a narrativa hegemônica instala a polarização e a agenda em torno da atual vice-presidenta Cristina Kirchner, a reforma poderia suscitar um debate relevante na sociedade argentina sobre a representatividade do Poder Judiciário.

"Como acontece em toda a América, e na Argentina não é diferente, metade da população detida está detida com prisão preventiva, e não por condenação", afirma Franquet, algo que ocorre inclusive contra o que estabelece o próprio Código Penal. No entanto, a reforma não aponta para uma solução direta a essa problemática.

"Supostamente, o Poder Judiciário não está vinculado a nenhum interesse político e atua imparcialmente para alcançar uma sociedade mais justa", afirma Silvina Romano. "Mas a realidade é que o aparato judicial, por formar parte do Estado, é em si mesmo político. E, talvez, uma das partes mais politizadas do Estado-Nação."

Agora, o projeto da reforma judicial será tratado na Câmara de Deputados, onde o governista Frente de Todos deverá buscar consensos para aprovar o projeto.

Edição: Vivian Fernandes