Lamento

Artigo | 90 minutos de silêncio: futebol e Brasil

"Além de arquibancadas, milhares de famílias terão de conviver com outros espaços vazios em suas vidas", diz pesquisador

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Estádio do Maracanã no jogo entre Bangu e Flamengo, no último mês de junho - Mauro Pimentel/AFP

No Estádio Nacional do Chile, em Santiago, uma parte das arquibancadas permanece sempre vazia. Batizada como “tribuna viva”, homenageia os mortos, desaparecidos e torturados naquele estádio durante a ditadura comandada por Augusto Pinochet (1973-1990). A arquibancada vazia está ali para que os chilenos não se esqueçam e para que não se repita.

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Aqui no Brasil, os jogos de futebol também têm tido o testemunho de arquibancadas vazias, mas, neste caso, para que esqueçamos os mais de 126 mil brasileiros e brasileiras mortos e para que esta tragédia se repita a cada dia.

No último final de semana, o Campeonato Brasileiro completou sua oitava rodada. Antes dele, os principais campeonatos estaduais do país concluíram suas disputas, interrompidas em março pela emergência da pandemia. Apenas Roraima, Piauí, Tocantins, Mato grosso do Sul e Goiás ainda não concluíram seus campeonatos. A Copa do Nordeste também foi retomada e concluída. Os times brasileiros ainda devem retornar, em breve, para a disputa da Copa Libertadores da América nos próximos dias.

Os resultados são óbvios. Após a retomada do campeonato alagoano, 18 atletas e um árbitro da final testaram positivo. Na retomada das quatro séries do campeonato brasileiro, 116 atletas já testaram positivo. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) tem testado os atletas a cada rodada, porém quanto menos lucrativa a divisão, maiores os problemas. Somente na série D, são 68 times de todos os estados, do norte ao sul do país, envolvidos em translados, hospedagem e partidas.

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Além disso, os protocolos e a estrutura da CBF falharam imediatamente na primeira rodada, quando a partida entre São Paulo e Goiás precisou ser cancelada quando nove atletas do time goiano testaram positivo. E como ficam os demais trabalhadores que não são atletas ou da comissão técnica? Aqueles que trabalham na limpeza, na estrutura, na comunicação, os gandulas, etc., em todo funcionamento do estádio mesmo sem torcidas?

O calendário do futebol exerce uma perigosa função de desdobrar esta falsa normalidade para todas as dimensões da vida. Afinal, se acabaram as reprises dos jogos antigos na TV, se os cavalinhos do “Fantástico” voltaram a fazer piadas no fim da noite de domingo e os problemas dos nossos técnicos e jogadores estão exatamente como deixamos há meses atrás, podemos voltar para as segundas-feiras comuns.

Neste caso, mais do que o calendário do futebol internacional, impulsionado por uma Europa mais bem sucedida em executar o isolamento, ou pelo pagamento da cota de televisão, o retorno do futebol foi pressionado justamente pela necessidade do governo federal em derrubar isolamento social e forçar um retorno às atividades econômicas.

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Neste caso, o Flamengo teve papel determinante. Maior torcida do país, atual campeão brasileiro e da Libertadores, o time pressionou para o retorno do campeonato carioca em julho. Na ocasião, Fluminense e Botafogo tentaram impedir a volta e foram ameaçados pela própria Federação carioca com um processo de R$ 100 mil por danos morais e indenização por danos materiais, em valores a serem levantados e exigindo retratação pública, passível de multa de R$ 1 milhão. Não a toa, o presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, celebrou a volta do futebol como “um exemplo para outras atividades”.

Curiosamente, dias antes do retorno do campeonato, o governo assinou a Medida Provisória 984, apelidada de “MP do Flamengo”, que altera a regra dos direitos de transmissão no futebol brasileiro. A MP beneficia as negociações do Flamengo com operadoras de streaming para as transmissões de suas partidas, atingindo principalmente a TV Globo, crítica de Bolsonaro.

O presidente flamenguista esteve com Bolsonaro no dia da assinatura da Medida e a equipe presidencial cogitou a possibilidade de que Landim participasse das nefastas lives de quinta-feira do ex-capitão.

Entretanto, a ganância dos dirigentes pode ter também prejuízos econômicos a curto prazo. As cotas de televisão são parte essencial do caixa dos clubes, mas não são as únicas fontes de receitas. Em especial, o desastre da inserção brasileira nos megaeventos esportivos internacionais estabeleceu a lógica da arenização dos estádios, impondo estruturas que necessitam de outras atividades para viabilizar seu funcionamento.

Sem torcedores, não há movimentação comercial nas lojas que fazem partes destes complexos, nem arrecadação que viabilize economicamente estas estruturas. O Allianz Parque, por exemplo, preteriu uma partida do Palmeiras para realizar um evento no formato drive-in, além de ter demitido inúmeros funcionários durante o período de isolamento.

:: Boletim Ponto: Aqui na terra tão jogando futebol ::

Em todo o mundo, as relações entre o esporte e a política fazem parte do cotidiano desde que as massas passaram a participar de ambos. No caso brasileiro, de Getúlio Vargas em diante, não há presidente que não tenha interagido de alguma maneira com o futebol e procurado legitimar seu governo por meio do esporte ou associá-lo às conquistas esportivas.

O problema está em utilizar o esporte, comumente associado à saúde e ao corpo, com um projeto de estímulo ao adoecimento e à morte. Se municípios em Santa Catarina e em Minas Gerais, se sentem à vontade para liberar a realização as partidas entre amigos, as “peladas”, é porque de fato o futebol se tornou exemplo para as demais atividades. Porém, além das arquibancadas, milhares de famílias terão de conviver com outros espaços vazios em suas vidas.

*Miguel Enrique Stédile, doutorando em História pela UFRGS, pesquisador de futebol e ditadura militar, coeditor da newsletter Ponto do Brasil de Fato.

Edição: Vivian Fernandes