A pandemia do novo coronavírus alterou a vida e a rotina de toda a população brasileira desde o mês de março deste ano. Com as medidas de isolamento social, houve suspensão de diversas atividades, entre elas as aulas nas escolas públicas e cursinhos em nível presencial. Entretanto, iniciativas para manter a formação de pessoas negras, visando a preparação para os exames de ingresso no ensino superior, que não tiveram alterações no calendário, vêm sendo realizadas virtualmente.
O Quilombo Educacional Gbesa é um desses espaços. Segundo Anderson Gavião, um dos idealizadores e coordenador geral do projeto, a ideia surgiu a partir da urgência de construir espaços formativos para auxiliar na instrumentalização de negros e negras, sobretudo jovens, a ingressarem nas Instituições de Ensino Superior (IES).
“O nosso Quilombo pode ser compreendido como um espaço que é resultado do processo de democratização do acesso às universidades, uma vez que a maioria dos(as) integrantes são frutos da política de ações afirmativas. Dando continuidade às ações políticas afirmativas elaboradas pelos Movimentos Negros, ao longo do século 20, com o propósito de ampliar o acesso cada vez mais de pessoas pretas nos espaços de tomadas de decisão”, explica Anderson.
Gbesa é um nome que tem origem nas línguas africanas Mina e Fon, que traz como significado ‘a voz mágica que acorda os ancestrais’. “A escolha do nome parte da necessidade de reaproximação com as cosmovisões africanas, que têm no comunitarismo o princípio que movimenta e dá sentido aos nossos passos no mundo”, pontua Gavião.
Entre as inspirações do projeto político do Quilombo educacional, está o intelectual e militante brasileiro Abdias do Nascimento, a partir da formulação teórica do ‘quilombismo’, compreendendo a importância da experiência histórica dos quilombos, em termos de organização, territórios, relações comunitárias, luta e resistência à escravização, exploração e desumanização de negros e indígenas.
”Um Quilombo Educacional voltado para revisão sistemática da preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) transcende a ideia de um cursinho social ou popular. Foi gestado durante o caos da pandemia de covid-19, dentro de um contexto conturbado, apresentando-se como uma proposta de construção coletiva, amparada nos princípios filosóficos de Exu, que nos ensina que o caos também pode se colocar como um ambiente fértil, de grandes transformações e crescimento para o nosso povo. Acreditamos que ‘acordar os nossos ancestrais’ é uma via importante a ser acessada para caminharmos rumo ao despertar das nossas potencialidades e, assim, empretecendo mais e mais as universidades”, ressalta Anderson.
Organização do Gbesa
O curso conta com a participação de 35 estudantes, majoritariamente do estado da Bahia, dos municípios de Salvador, Feira de Santana, Simões Filho, Camaçari, Arembepe, Lauro de Freitas, da região da Chapada Diamantina; mas também de outros estados como Minas Gerais e São Paulo. É gratuito e conta com professores voluntários. A equipe de trabalho é formada por 36 pessoas, distribuídas em quatro núcleos: professores das áreas de conhecimento, psicossocial, coordenação e comunicação.
As aulas são realizadas através de uma plataforma de conferência, de segunda a sexta, no turno da noite, com monitorias no turno vespertino. Aos sábados, acontecem encontros com o núcleo psicossocial e formações coletivas, para discutir identidades negras, territorialidade, educação para as relações étnico raciais, afrocentricidade, dentre outras temáticas que dizem respeito às diversas experiências de pessoas negras no mundo.
Desafios e importância das aulas on-line
Entre os desafios, estão o primeiro contato de alguns com os assuntos; retomada do estudo depois de anos; o tempo curto até a realização do ENEM; a adaptação de professores e estudantes ao modelo de ensino à distância; impacto das crises geradas pela pandemia e as repercussões emocionais disso; além do elemento do acesso à internet.
“Essas aulas, para mim, apareceram em forma de um presente, porque mesmo em um momento tão difícil como este, de distanciamento social e de diferentes crises, ainda assim os professores conseguem acender o nosso sol interno”, afirma a estudante Fernanda Conceição Santos.
Para Fernanda, mesmo com as dificuldades tecnológicas, os conteúdos são repassados de forma honesta e com preocupação com o aprendizado. “Sobre os desafios neste período de pandemia, posso citar a instabilidade na conexão da internet, que, às vezes, atrapalha e também a dificuldade de concentração, visto que a ansiedade aumentou consideravelmente. Sendo assim, temos que ir nos adaptando e buscando ter foco na rotina de estudo”, conta a estudante.
Voluntário, o professor de Biologia, Fábio Nunes, diz que que a importância da iniciativa está na necessidade de promover os estudantes como construtores de suas próprias histórias. “Povo preto organizado sempre foi e continua sendo importante para garantir a nossa própria sobrevivência. A educação é fundamental na transformação das nossas realidades, por isso estou doando meu tempo não apenas para uma aprovação, mas como ajudante no processo de construção da nossa própria sobrevivência”, reitera Nunes.
O estudante Ruan Wills diz que a experiência tem sido boa, mesmo estando longe da grade curricular desde 2014. “A forma com que o quilombo tem organizado e entrado em contato diariamente comigo, pessoalmente, me conforta de alguma maneira, não sinto pressão, como normalmente tinha na escola e na faculdade. Sinto mais uma acolhida junto com uma tentativa de me alertar para as minhas necessidades enquanto estudante. A maior dificuldade tem sido conseguir me organizar nos horários extra aulas para estudo”, comenta Wills.
Acessar as universidades públicas é possível
O professor de Química, Elton Bernardo, um dos idealizadores do projeto, acredita que entre os desafios mais trabalhosos é como conseguir despertar a consciência nos estudantes de que são potentes e capazes de entrar em universidades públicas, uma vez que negros e negras são desacreditados e pouco estimuladas a vislumbrar a ocupar os espaços e instituições de poder. “Existe um projeto em curso que visa mutilar as nossas existências de todas as formas, e o nosso desafio é não sucumbir a ele, com altivez, dignidade, bicão na diagonal e ciente da grandiosidade da nossa história”, conclui o professor.
Daniele Souza, da coordenação do Núcleo Psicossocial, comenta que foi um desafio e uma realização grande receber o convite para pensar o projeto. “Pensar sobre o processo educativo sob uma ótica que viabiliza enxergar questões sobre a nossa construção, enquanto povo preto que ocupa espaços e resiste neles, é falar também sobre a transformação no olhar desse jovem que acessa lugares que por vezes não são vistos como possíveis”, diz Souza.
O Núcleo Psicossocial, constituído por psicólogos, se propõe a acolher e acompanhar os estudantes, ofertando espaços de escuta, reflexão a respeito de seus processos e percursos educacionais, bem como intervenção breve quando necessário. “O trabalho é pautado no respeito à singularidade e à subjetividade dos discentes. Estar na condução desse processo tem um significado muito importante no sentido de ter um olhar diferenciado sobre a compreensão da complexidade presente nos processos de troca e no desenvolvimento de ligações baseadas nas experiências construídas. Pensando em estudantes negros que irão ocupar instituições que são campos de disputas por espaço reproduzido a partir de uma sociedade racista, acredita-se que há uma necessidade de abrir espaços de discussão sobre o acesso e permanência pautadas nas questões raciais”, finaliza.
Fonte: BdF Bahia
Edição: Elen Carvalho