Dinheiro público

Como 2ª maior obra viária da Copa 2014 virou herança maldita e está parada há 5 anos

O que começou como um projeto de R$ 700 milhões já está calculado em mais de R$ 2 bilhões e não tem prazo para acabar

São Paulo |

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Vagões do VLT de Cuiabá estacionados em pátio. Eles foram adquiridos em 2013 - Divulgação/Secom-MT

A segunda obra de mobilidade urbana mais cara planejada para a Copa do Mundo de 2014, um sistema de VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) em Cuiabá (MT), foi licitada inicialmente R$ 1,4 bilhão e tinha como prazo de conclusão dezembro de 2013.

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Sete anos depois, a obra está parada, com pouco mais de 50% dos trabalhos realizados, já consumiu mais de R$ 1,1 bilhão, e a estimativa do governo do Estado de Mato Grosso é que seria necessário, pelo menos, mais R$ 1 bilhão para sua conclusão.

O atual governador do Estado, Mauro Mendes (DEM), é o terceiro mandatário a tentar terminar a obra. Na semana passada, pela primeira vez desde o início de seu mandato, ele admitiu que talvez não seja possível ou mesmo conveniente concluir a obra.

O VLT de Cuiabá passou e passa por uma sucessiva série de percalços desde sua origem. Seu planejamento e execução foram alvos de críticas e denúncias desde que passaram a constar na chamada Matriz de Responsabilidade da Copa do Mundo de 2014.  Os principais pontos eram denúncias de superfaturamento e uma suposta escolha equivocada do modal de transporte para uma cidade do tamanho de Cuiabá. Antes mesmo do primeiro canteiro ser instalado, especialistas em urbanismo e transporte davam como certo que a obra não ficaria pronta a tempo.

As primeiras denúncias e a obra com várias frentes inacabadas 

O VLT surgiu nos planos do estado de Mato Grosso junho de 2011. Foi quando políticos locais anunciaram a construção da linha de trem de 22 quilômetros, de custo previsto de R$ 700 milhões. Três meses depois, um novo projeto corrigiu o valor para R$ 1,1 bilhão.

O valor era equivalente a todo o montante de investimentos para a Copa que o Ministério do Esporte previa para Cuiabá, incluindo obras no aeroporto (R$ 88 milhões) e a construção de um estádio (R$ 597 milhões).  Estudos técnicos de universidades e empresas contratadas pelo governo federal - que financiaria 80% da obra - recomendavam a construção, na verdade, de um BRT (Bus Rapid Transit, corredores de ônibus exclusivos), ao custo de R$ 489 milhões. 

A Agência Estadual de Execução dos Projetos da Copa do Mundo do Pantanal (Agecopa) incluíra em seu projeto de obras da Copa, enviado ao Ministério do Esporte em setembro de 2009, a construção de três corredores integrados de ônibus. Em novembro de 2011, no entanto, quando as obras do BRT já deveriam estar em execução há um ano, a Agecopa anunciou a mudança radical de projeto, para a construção do VLT, que seria feita em tempo recorde, para estar pronta a tempo do Mundial de futebol, em 2014.

A licitação da obra veio a ocorrer em maio de 2012, e o valor de contrato subiu para R$ 1,47 bilhão. Em agosto do mesmo ano, um então funcionário do governo do Estado revelou a um órgão de imprensa que as empresas vencedoras do certame eram conhecidas um mês antes da abertura dos envelopes. Com isso, foram abertas as primeiras investigações do Ministério Público Federal sobre os contratos da empreitada e passaram-se a registrar os primeiros atrasos no cronograma físico dos canteiros.

O economista e cientista político Vicente Vuolo é coordenador do Movimento Pró-VLT em Mato Grosso. Escreve há mais de um semanalmente na imprensa local sobre o assunto. É considerado um dos maiores conhecedores dos detalhes da obra. Em virtude de tudo que já foi investido pelo poder público, defende que seja concluída a empreitada, mas identifica já neste início de trabalho os problemas que fazem com que a linha não esteja pronta até hoje.

"Houve erros, sim, durante a construção. Por exemplo, lançaram várias frentes de trabalho, e nenhuma obra foi entregue completa. O certo seria fazer de uma maneira sequencial", conta o especialista. De fato, com o percentual de execução que se encontra atualmente a obra, seria possível que pelo menos parte do sistema já estivesse funcionando, ligando, por exemplo, o aeroporto internacional, que fica na cidade de Várzea Grande, na Grande Cuiabá, à região central da capital mato-grossense. 

A Copa passa, o governo muda, a obra não anda

A Copa do Mundo de 2014 foi realizada no Brasil e, em Cuiabá, quem visitou a Arena Pantanal viu uma cidade atravessada por canteiros inacabados de uma obra que chegou ao fim daquele ano com 30% dos trabalhos concluídos.

Em 2015, o ex-governador Silval Barbosa (MDB) deixou o governo pedindo desculpas por não ter entregue a obra a tempo mas garantindo a lisura em todos os procedimentos. Ele viria a ser preso dois anos depois, chegando a assinar um acordo de delação premiada em que confessou o contrário disso. O novo governador que assumia o cargo em 2015, Pedro Taques (PSDB), encomendou logo nos primeiros meses de governo um estudo técnico para tomar pé das condições da empreitada naquele momento.


A principal avenida do município de Várzea Grande, onde fica o aeroporto internacional, é cortada há sete anos por trilhos inacabados (Crédito: MPF-MT)

Ao apresentar o estudo à sociedade, afirmou: “É o maior escândalo da história de Mato Grosso”. Entre os problemas que apresentou, estavam:

- Apenas 30% da obra tinha sido executada, já tinham sido gastos 64% dos recursos originais, de R$ 1,47 bilhão, ou cerca de R$ 940 milhões. Mas, segundo as contas feitas pelo governo, seriam precisos mais R$ 800 milhões, o que faria com que o sistema tivesse um custo total de R$ 1,74 bilhão. Inicialmente, quanto pleiteava junto ao governo federal um financiamento (que foi obtido) para a obra, as autoridades do Estado falavam em um custo estimado de R$ 1,1 bilhão.

- O Estado de Mato Grosso atrasara quase todos os pagamentos ao consórcio construtor nos meses precedentes à Copa, justamente quando a obra deveria ser acelerada para terminar a tempo. Em agosto de 2014, após ficar sem receber desde dezembro de 2013, o consórcio que fazia as medições da obra anunciou que não iria mais trabalhar sem receber. Por causa disso, medições deixaram de ser realizadas por três meses, o que gerou uma série de erros técnicos que não foram corrigidos.

 - O governo que assumia não acreditava na conveniência de se concluir o VLT. O governo de Pedro Taques consultara técnicos em transporte público e chegara à mesma conclusão que os engenheiros da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso) haviam chegado em 2011: o VLT é caro, terá que ter tarifa subsidiada pelo governo para ser economicamente viável a seu futuro operador, não privilegia o planejamento urbano existente em Cuiabá, tem um traçado que não condiz com os maiores fluxos de pessoas na cidade e será menos eficiente do que teria sido a construção, por menos de R$ 500 milhões, de um sistema de corredores exclusivos de ônibus, que constava no plano de mobilidade urbana de Cuiabá até 2011, quando foi substituído pelo VLT.


Membros do governo passaram a dizer que “o trem liga nada a lugar nenhum”. O desgaste político de não concluir a obra, porém, fazia com o Executivo mato-grossense hesitasse diante da hipótese de abandonar o projeto.

Um novo governo tenta concluir a obra, mas já ameaça desistir

O governo Taques foi marcado por sucessivas retomadas e novas paralisações das obras, seja por decisões judiciais, revisões contratuais ou falta de caixa do Estado. Desde o final de 2016, porém, nada mais foi feito nos canteiros. A cidade convive com uma coleção de esqueletos inacabados de viadutos e trilhos.

"Já foi realizado um alto investimento em Cuiabá e Várzea Grande. Esse dinheiro não pode ser jogado no lixo. Foram comprados 40 trens, 240 vagões diretamente da Espanha, foi construído um viaduto ao lado do aeroporto internacional e outro na principal avenida de Várzea Grande, além de 3,5 quilômetros de trilhos eletrificados na mesma cidade. Além disso, foi feita uma ponte de mais de 200 metros sobre o rio Cuiabá e mais dois viadutos na capital", enumera o economista Vicente Vuolo, que está em campanha para que o atual governador, Mauro Mendes (DEM), conclua os trabalhos pelo menos no trecho de Várzea Grande, onde já está 70% encerrado, para que algo se inaugure e a população tenha algum benefício após tantos investimentos.

A peça de campanha abaixo, feita pela associação de Vuolo, mostra uma realidade que ajudou a eleger o atual governador: a de que ele prometeu entregar alguma solução à obra do VLT.


Peça de propaganda pela conclusão da obra do VLT mostra promessa do atual governador mato-grossense, de dar uma solução à obra / Vicente Vuolo/Movimento Pró-VLT

O destino da segunda obra de mobilidade urbana mais cara das que foram planejadas para a Copa do Mundo de 2014 (perde apenas para o corredor TransCarioca, no Rio de Janeiro, licitada por R$ 2,2 bilhões), no entanto, segue indefinido. Até hoje, as obras não foram retomadas.

No mais recente revés enfrentado pela empreitada, em julho deste ano, sem ter onde morar, 90 famílias ocuparam uma área entre os bairros Ouro Fino e CPA 1 em Cuiabá. Os barracos foram construídos atrás da Escola Militar Tiradentes. O local fora desapropriado pelo Estado em 2012 para construção do terminal do terminal do VLT, e desde então estava sem uso.

Já no dia 4 deste mês, a população cuiabana leu nos jornais que o terceiro governador do Estado a tentar concluir as obras está ao ponto de desistir. Conforme publicaram os principais veículos locais, Mauro Mendes informou ao ministro de Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, que deseja desistir do Veículo Leve Sobre Trilhos por conta do alto valor envolvido na retomada das obras e substituí-lo pelo BRT, aquele primeiro, que constava na Matriz da Copa desde 2009, pela metade do preço inicial do VLT. O governador disse também que sua equipe empenhou novos estudos que prevêem ser necessário mais investimentos, da ordem de R$ 1 bilhão, para concluir os trabalhos, elevando o valor total de recursos empreendidos a mais de R$ 2 bilhões.  

O maior jornal de Cuiabá publicou que o governador teria dito que estava "cansado da herança corrupta deixada por governos anteriores".

Edição: Rodrigo Durão Coelho