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Direito de greve transformado em armadilha

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Compreender o mecanismo jurídico que acabou com o direito constitucional de greve é fundamental para entender as dificuldades que causam uma imensa paralisia no movimento operário - Foto
Se uma greve não pode interromper a produção ou os serviços não tem eficácia

O julgamento do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que acabou com 50 cláusulas históricas do acordo coletivo dos empregados dos Correios, pondo fim a uma greve de 30 dias é mais um episódio que comprova como desmontaram o direito de greve nos últimos anos.

A greve é uma forma de inviabilizar a produção ou a produtividade de uma atividade econômica, com a finalidade de pressionar em prol do atendimento de interesses dos trabalhadores. Assim, pressupõe uma natureza coativa, já que se prejudica o negócio de alguém com a finalidade de constrangê-lo a conceder uma vantagem que não está prevista na lei ou no contrato.

Conquistar o direito de greve foi uma luta histórica, que custou caro para as classes trabalhadoras. É a forma de luta privilegiada para tentar obrigar a empresa a fazer algo que não pretende fazer ou não está obrigada por lei: conceder aos trabalhadores, vantagens não necessariamente previstas em lei.

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Se uma greve não pode interromper a produção ou os serviços não tem eficácia. Não exerce pressão. Não é greve.

Trata-se de um direito conquistado com muitos sacrifícios pela classe trabalhadora. E ao longo de mais de meio século em que deixou de ser criminalizado e passou a ser admitido em nosso ordenamento constitucional, o Estado sempre buscou suprimi-lo indiretamente através da lei ordinária.

Converteu-se numa arma fundamental para derrotar a ditadura a partir do final da década de 70. Um direito que foi reconquistado enfrentando intervenções sindicais, demissões e até prisões. Foi a grande bandeira da classe trabalhadora nas eleições constituintes de 1986.

E assegurou uma conquista decisiva na redação do artigo 9º da Constituição Federal de 1988, inspirada na lei surgida durante a Revolução dos Cravos em Portugal.

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A reação patronal não tardou. Meses após a promulgação do texto constitucional surge a chamada “Lei de Greve”. Começa a ofensiva jurídica para cercear o direito. O legislador infraconstitucional, estipula que “frustrada a negociação”, é facultada a cessação coletiva do trabalho”. Neste modelo, portanto, fica clarificado que o pressuposto do exercício do direito de greve é que tenha havido uma negociação preexistente e que a mesma tenha chegado a um impasse.

A greve se torna um ritual, previsível, completamente esvaziada de seu poder de pressão

A eclosão da greve sem a prévia tentativa de negociação irá caracterizar abuso de direito. Prazos e regras são criados para “regulamentar o direito de greve”. Surge a lista dos chamados “serviços ou atividades essenciais”. Foi baixada uma relação de atividades tidas como tal e exigida a manutenção de um esquema de emergência durante a paralisação.

Esquema este, que o Judiciário, vem transformando na exigência de 100% de funcionamento. Com isso o direito de greve acaba sendo suprimido indiretamente. A greve se torna um ritual, previsível, completamente esvaziada de seu poder de pressão.

Nos primeiros anos, houve intensa batalha jurídica sobre a constitucionalidade da Lei de Greve. Categorias com maior capacidade de pressão ignoravam essas regras.

O cenário se altera com a mudança da correlação de forças na década de 90. Inicia-se o período da chamada “primeira ofensiva neoliberal” e a luta da classe trabalhadora enfrenta um quadro cada vez mais adverso. A grande batalha se dá com a greve dos Petroleiros de 1995.

Basta cumprir a obrigação legal de comunicar a greve para receber em poucas horas a notícia de uma liminar que esvazia completamente a força do movimento

A greve, que durou 32 dias, colocou em pauta reivindicações econômicas da categoria e a defesa do monopólio estatal sobre o petróleo, que acabaria por ser quebrado pelo Congresso Nacional, pouco após o fim do movimento.

Para reprimir a greve e criar um exemplo para o conjunto do movimento sindical, o governo de Fernando Henrique Cardoso demitiu lideranças sindicais, a imprensa acusou os petroleiros pela falta do gás de cozinha, enquanto na verdade, os distribuidores especularam com o produto para garantir um aumento do seu preço e o Tribunal Superior do Trabalho decretou a “abusividade” da greve, estabelecendo uma multa diária de R$ 100 mil enquanto durasse a paralisação, penhorando bens e retendo a receita das contribuições dos sindicalizados.

Os trabalhadores conseguiram manter heroicamente a greve até o momento em que a intervenção de tropas militares obrigou a retomada da produção.

Desde então a blindagem jurídica foi se aperfeiçoando. Basta cumprir a obrigação legal de comunicar a greve para receber em poucas horas a notícia de uma liminar que esvazia completamente a força do movimento. A exceção repressiva da greve dos petroleiros virou a regra e foi incorporada pelo movimento sindical.

Um novo ataque se deu através da Emenda Constitucional nº 45 em 2004, que obrigava o “comum acordo” para a instauração de dissídio coletivo na Justiça do Trabalho. Desde então, as empresas não aceitam as propostas dos trabalhadores e não oferecem nada ou oferecem uma contra proposta vergonhosa.

Os trabalhadores são obrigados a utilizar a greve como instrumento de luta. Só que não podem mais entrar com dissídio coletivo, sem a prévia concordância da empresa. E o que é mais grave. O Ministério Público do Trabalho pode ajuizar o dissídio apenas para julgar se a greve é ou não abusiva.

Compreender o mecanismo jurídico que acabou com o direito constitucional de greve é fundamental para entender as dificuldades que causam uma imensa paralisia no movimento operário

O cerco contra o direito de greve se fechou com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que acabou com a “ultratividade”. Até então, as cláusulas de um acordo coletivo ficavam incorporados ao contrato individual de trabalho até um novo acordo ou convenção coletiva.

Isso é chamado de ultratividade. Sem isso, quando termina o prazo do acordo coletivo, os trabalhadores ficam desamparados, perdem seus direitos anteriormente conquistados e são chantageados pelo patrão para rebaixarem suas conquistas em troca daquilo que já tinham assegurado antes.

Não havia nenhuma polêmica jurídica a respeito desta súmula. Porém, acabar com a "ultratividade" foi um pressuposto fundamental para aprovar o projeto do "negociado acima do legislado", um dos principais ataques aos direitos dos trabalhadores, que aprovaram na chamada Reforma Trabalhista.

A jurisprudência do TST foi se tornando cada vez mais restritiva e cada julgamento acarreta a perda de direitos que as categorias mantinham por décadas, como no caso dos empregados dos Correios.

Compreender o mecanismo jurídico que acabou com o direito constitucional de greve é fundamental para entender as dificuldades que causam uma imensa paralisia no movimento operário. Retomar o direito de greve exigirá não só força e articulação entre as principais categorias, como também uma intensa mobilização social que altere a correlação de forças.

Edição: Leandro Melito