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Artigo | Perdão das dívidas: Deus no céu e (algumas) igrejas evangélicas na terra

As igrejas evangélicas - não só elas, mas em especial elas - principalmente as que mais devem, seguem enriquecendo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Bolsonaro, com todo o cuidado com a sua principal base, disse que gostaria de sancionar e perdoar as dívidas, porém, não haveria encontrado amparo jurídico para tal - Carolina Antunes / Fotos Públicas

Por Delana Corazza e Angelica Tostes

No início do mês de setembro, o Congresso Nacional aprovou um projeto que anulava as dívidas das igrejas à Receita Federal. As dívidas tributárias das igrejas, acumuladas após multas e fiscalizações, somam mais de R$1 bilhão de reais.

O projeto foi de autoria do Deputado Federal David Soares (DEM-SP), filho do pastor R.R. Soares, fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus – instituição que soma R$37,8 milhões de dívida, além de outras cobranças milionárias.

É sabido que as igrejas são isentas de diversas obrigações tributárias, essas isenções são garantidas pela Constituição como proteção à liberdade religiosa. Entretanto, alguns recolhimentos ainda são necessários, como a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, a CSLL, ou a contribuição previdenciária. Ambos estavam no alvo dessa anistia. Embora, o projeto tenha sido aprovado, ele necessitava do sancionamento de Bolsonaro.

Antes da tomada de decisão, Bolsonaro, com todo o cuidado com a sua principal base, disse que gostaria de sancionar e perdoar as dívidas, porém, não haveria encontrado amparo jurídico para tal. Sendo assim, não poderia sancionar o projeto da maneira que estava, pois poderia cometer um crime de responsabilidade, passível de impeachment

Orientado por sua equipe econômica, Bolsonaro, por fim, veta o projeto no dia 11 de setembro, sendo publicado na segunda-feira (13) no Diário Oficial. Após a comunicação do veto, Bolsonaro escreveu nas redes sociais: "Confesso, caso fosse Deputado ou Senador, por ocasião da análise do veto que deve ocorrer até outubro, votaria pela derrubada do mesmo.” 

Após a decisão, o presidente se reuniu com a bancada evangélica para que derrubassem o veto. Se as empresas-igrejas pagassem suas dívidas e devolvessem aos cofres públicos o valor bilionário das multas pelas contribuições não pagas, o Brasil contaria com esse valor para a Previdência, Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Sistema Único de Saúde (SUS) e Bolsa Família – benefícios sociais que a base evangélica tanto necessita.

Um dos líderes da bancada, Sóstenes Cavancante (Democratas), além de pressionar para a derrubada do veto, também tem articulado para que haja um parecer jurídico que comprove que não há crime de responsabilidade ao aprovar a isenção.

As igrejas que mais devem são a Igreja Internacional da Graça de Deus (R$ 145,3 milhões), a Igreja Mundial do Poder de Deus (R$ 90,5 milhões), a Igreja Apostólica Renascer em Cristo (R$ 33,4 milhões) e a Associação Vitória em Cristo (R$ 35,7 milhões).

Dado que a bancada evangélica é um dos principais pilares de sustentação política do atual governo, qual o seu limite? Para além da reflexão que temos que fazer sobre o que seria, em meio à uma pandemia perdoar mais de 1 bilhão de reais destinados aos cofres públicos, a preocupação não menos importante é sobre o papel da bancada evangélica no Congresso Nacional, que nunca escondeu seus reais interesses e seu potencial de articulação.

No caso analisado, 345 parlamentares votaram a favor do perdão da dívida – incluindo partidos da oposição, 125 contra e 2 abstenções.

“Pode-se notar a capacidade de articulação da bancada evangélica pelo resultado da votação. Apenas as bancadas de dois partidos, PSOL e Rede, votaram integralmente contra o projeto de Lei, sendo que o Rede consta atualmente com apenas um parlamentar”, disse o pesquisador de religião e direitos humanos, Humberto Ramos - Grupo de Estudos de Religião e Política (GEMRIP) e Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), em entrevista ao Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

O cálculo feito, inclusive pelos partidos de oposição, é o preço político que parlamentares e partidos irão pagar se forem contra “os evangélicos”, de olho em sua base.

Teologia do Domínio: estratégias e projeto de poder

Não é mais novidade a percepção de que os trabalhadores mais empobrecidos de nosso país buscam na religião refúgio e acolhimento em momentos de crise. Desde a década de 90, quem tem dado respostas cotidianas para esses trabalhadores são as igrejas evangélicas que crescem principalmente nas periferias do Brasil.

A projeção feita pelo demógrafo José Eustáquio, professor aposentado da escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é de que na década de 2030 os evangélicos ultrapassem o número de católicos. Nesse contexto tem sido construído um projeto de poder – bem-sucedido, diga-se de passagem - pelas grandes lideranças religiosas apoiados no potencial eleitoral dos crentes.

Do ponto de vista teológico, esse projeto de poder dialoga com a interpretação bíblica denominada Teologia do Domínio, que enxerga a conversão ao cristianismo como única possibilidade de salvação e, para isso, se coloca a tarefa de ocupação em diversos campos: na cultura e nas artes, na educação, na imprensa, nos negócios, na política, na família e na própria religião.

Um dinheiro que poderia ampliar o auxílio emergencial de milhões de trabalhadores nesse momento irá para o bolso dos já milionários pastores midiáticos que atuam em ligação estreita com um governo anti-povo

Também entrevistado pelo Tricontinental, o pesquisador Rafael Rodrigues da Costa  da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), avalia que a conexão da teologia do domínio e o perdão da dívida é profunda, para além do aparato do poder quantitativo dos líderes evangélicos.

O pensamento predominante, a partir da Teologia do Domínio, é que os evangélicos são a representação do Reino de Deus na terra, e esse crescimento expressivo seria consequência do poder divino desse grupo.

Costa ainda diz que, partindo dessa mentalidade, para eles, é “altamente razoável o Estado perdoar a dívida das igrejas, já que a igreja está sendo a presença de Deus na terra”, ou seja, qualquer coisa que vai contra as igrejas evangélicas, inclusive a tributação, é estratégia de Satanás para o enfraquecimento desta, por isso deve ser combatida.

Quantas igrejas existem na palavra Igreja?

Qual o nosso papel na defesa da laicidade do estado e no diálogo com a base evangélica? Parte considerável dessa base não se identifica com a bancada evangélica. No entanto, muitas vezes, a mediação feita pelo pastor, somada às fake news descolam essa base dos seus reais interesses.

Para Humberto Ramos, existe um discurso muito forte das lideranças evangélicas contra o estado e contra a “coisa-pública”. A adesão e defesa deste discurso estão nos parlamentares e líderes das megadenominações, mas o povo acaba tendo o mesmo discurso por questões ideológicas, já que é bombardeado com essas informações.

Para o pesquisador, “a base e os pastores mais simples não têm noção do que representa essa ampliação de imunidade das igrejas para os cofres públicos, (...) no entanto, apesar de muitas vezes aderirem ao discurso, existem as contradições das suas próprias vidas, já que a base evangélica precisa do estado, ainda que haja uma desconfiança na máquina pública”.

As igrejas periféricas seguem no esforço cotidiano de manutenção de seus espaços e seus pastores, que seguem vítimas da crise econômica, assim como seus fiéis

O perdão da dívida deverá atender aos interesses das megadenominações, dado que são essas grandes igrejas evangélicas que mais devem. Na prática, os benefícios que as igrejas periféricas aproveitariam seriam quase nulos. Em uma crise sanitária e econômica, a demanda dos serviços do Estado aumenta e isentar esse pagamento seria ir contra aos direitos da classe trabalhadora.

Um dinheiro que poderia, por exemplo, ampliar o auxílio emergencial de milhões de trabalhadores nesse momento, inclusive, fiéis dessas pequenas igrejas, irá para o bolso dos já milionários pastores midiáticos que atuam em ligação estreita com um governo anti-povo.

As igrejas evangélicas - não só elas, mas em especial elas - principalmente as que mais devem, seguem enriquecendo. Quantos benefícios essa roupagem religiosa tem garantido às empresas-igrejas e seus empresários-pastores? Se uma entidade religiosa, de qualquer natureza, ainda que exerça atividades religiosas, priorize a exploração econômica, cabe a pergunta: o que é igreja?

Em paralelo, as igrejas periféricas seguem no esforço cotidiano de manutenção de seus espaços e seus pastores, que seguem vítimas da crise econômica, assim como seus fiéis. É preciso, como alerta Magali Cunha, não generalizar os evangélicos.

Existem igrejas, pastores e pastoras, e fiéis em “distintos espaços religiosos, defensoras das pautas direitos humanos, antirracistas, sexuais e reprodutivos, de pluralidade religiosa e ambientais, não andam em destaque nas matérias de crimes e ilegalidades dos jornais nem trabalham para o governo de extrema-direita”.

Disputar o que é igreja e o que é ser evangélico é tarefa importante em nossos discursos, assim, conseguiremos dialogar para que a base evangélica não apoie líderes e políticos religiosos que seguem defendendo ideias nas quais a classe trabalhadora crente é diretamente prejudicada.

*Angelica Tostes, teóloga e mestre em Ciências da Religião, é pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social no Brasil sobre Neopentecostais e Política, e também pesquisadora externa na PUC-GO. 

**Delana Corazza é pesquisadora do Observatório sobre os neopentecostais na política.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Leandro Melito