Argentina

Artigo | Dez anos sem Néstor Kirchner

Em 27 de outubro de 2010, morria repentinamente o ex-presidente argentino Néstor Kirchner, aos 60 anos

Brasil de Fato |
Cristina Fernández de Kirchner, enquanto presidenta argentina, e Néstor Kirchner, ex-presidente do país - Télam

Em 2003, ele chegou no governo com mais desemprego do que votos. Pela primeira vez, Fidel Castro foi à posse de um presidente argentino. “Foi fundamental para a integração regional”, disse Celso Amorim. Em 2003, Brasil e Argentina assinaram o Consenso de Buenos Aires, para acabar com o Consenso de Washington, afirmando que “o bem-estar dos povos constitui o objetivo prioritário de ambos os Governos, (…) incluindo o direito ao desenvolvimento, em um âmbito de liberdade e justiça social”.

Ele acabou com a impunidade dos responsáveis pelo último golpe cívico-militar argentino. Foram presos mil militares, membros da Igreja e o ministro da economia da ditadura, entre outras pessoas. Pediu o juízo político de alguns membros do Supremo Tribunal Federal argentino. Renovou o Supremo, colocando duas mulheres, pela primeira vez na história dos governos constitucionais, e o maior criminologista do continente, Raúl Zaffaroni.

Como deputado, em 2010, promoveu e votou a lei de matrimônio igualitário. Como secretário da Unasul contribuiu na mediação pra evitar uma guerra entre Venezuela e a Colômbia. Fortaleceu os movimentos sociais. Entendeu que precisava criar uma força própria e promoveu a criação de La Cámpora, um dos maiores movimentos sociais argentinos.

Há dez anos faleceu Néstor Carlos Kirchner, o homem que devolveu à Argentina a fé na política, que recuperou a política como ferramenta de transformação social.

Néstor Carlos Kirchner nasceu em 25 de fevereiro de 1950 em Río Gallegos, a capital de Santa Cruz, o estado mais austral argentino. Estudou direito na década de 1970, na universidade de La Plata, capital do estado de Buenos Aires, onde também começou militar na Juventude Peronista. Néstor não apostado na via armada como resolução dos conflitos, ainda que tenha convivido, apoiado e ajudado muitos companheiros dos Montoneros.

Em 1976, ano do golpe, voltou para Santa Cruz, onde trabalhou como advogado e fez trabalho de base. Criou e manteve aberto por anos comitês peronistas, onde militava. Em 1987, ganhou as eleições para prefeito de Rio Gallegos. Em 1991, foi eleito governador de Santa Cruz e foi eleito mais duas vezes. Como governador, denunciou a traição do governo Menem às bandeiras históricas do peronismo: soberania política, independência econômica e justiça social.

Trabalhou durante esses anos pela recuperação de um projeto de país que cuidasse de todos, entendendo que não seria suficiente só com o peronismo para recuperar a justiça social. Assumiu a Presidência da República no dia 25 de maio de 2003, trinta anos após a posse de Héctor Campora, representante de Perón que estava no exílio e que melhor representava a juventude peronista de esquerda. Naquela data, em 1973, Néstor estava na Praça de Maio.

No discurso de posse Kirchner disse que não iria deixar suas convicções na porta da Casa  Rosada. E cumpriu. Anulou as leis de impunidade para os genocidas. Quando tomou posse, as ruas da Argentina tinham piquetes todos os dias, os trabalhadores desocupados e organizados faziam parte dos movimentos piqueteros.

Kirchner construiu acordos com os movimentos piqueteros, que deixaram de receber do governo só assistencialismo e cestas básicas, e passaram a ter emprego e receber apoio do governo. O Movimento Evita, a Federação Terra e Vivenda, o Movimento Tupac Amaru, de Milagro Salas, entre outros, são prova disso. Milagro ainda continua em prisão domiciliar pela perseguição do governo Macri, do governador Gerardo Morales e a cumplicidade do judiciário de Jujuy. 

“Temos que reconstruir o espaço dos militantes, dos quadros, temos que valorizar a política de novo”, disse em 11 de março de 2004, no aniversário do triunfo de Cámpora.

Em 24 de março de 2004, dia do 28 aniversário do último golpe militar argentino, Kirchner fez um discurso histórico na Escola de Mecânica da Armada (Esma), o principal centro clandestino de detenção e tortura que existiu na Argentina – um campo de concentração –, e começou dizendo: “queridas Avós (da Praça de Maio), Mães (da Praça de Maio), Filhos (Filhos de vítimas do terrorismo de Estado), quando eu via as mãos, quando cantavam o hino, vi os braços dos meus companheiros, da geração que acreditou e continua acreditando, nos que ficamos, que esse país pode mudar”.

Naquele dia, Kirchner fez da Esma um espaço da memória. Naquele dia, Kirchner pediu perdão em nome do Estado argentino “pela vergonha de ter ficado calado durante 20 anos de democracia por tantas atrocidades”.

Naquele dia, Juan Cabandié, ministro do Meio Ambiente, que nasceu dentro da Esma – um neto recuperado, membro de La Cámpora –, fez um discurso histórico e disse: “Os 15 dias que minha mãe me amamentou e me deu o nome foram suficientes para eu contar aos meus amigos, antes de saber quem era minha família, antes de conhecer minha história, que queria me chamar de Juan como minha mãe me chamou durante o cativeiro na Esma”.

O ditador Jorge Rafael Videla, estando preso, em uma entrevista com a revista espanhola Cambio 16, disse que o pior momento para os militares chegou com o kirchnerismo. Videla morreu sentado no vaso da cadeia.

Em 15 de dezembro 2004, Kirchner anunciou que cancelaria a dívida com o Fundo Monetário Internacional. Foi um dia após Lula anunciar que o Brasil também cancelaria a dívida com o organismo internacional.

Em 2005, a Argentina foi sede da 4ª Cúpula da Américas, onde Kirchner, no discurso de abertura, disse: “Devemos construir consensos para acabar com a pobreza atávica, superar a indigência e a exclusão, evitar o aprofundamento da desigualdade social, a degradação ambiental, as crises recorrentes, a necessidade de sustentar a educação como fator decisivo para o progresso individual e social, promover o acesso ao conhecimento e promover o crescimento econômico com equidade, criar empregos para enfrentar a pobreza e fortalecer a governabilidade democrática”.

Também em 2005, o Mercosul e a Venezuela acabaram com a Alca, possibilitando o desenvolvimento dos nossos povos sem ingerências internacionais. Não existe organismo internacional que negue que, entre 2003 e 2015, o desemprego e a pobreza diminuíram na América Latina. Tampouco se pode ignorar a inclusão dos mais vulneráveis nos sistemas educativos e de saúde na região.

Em 2007, Kirchner não quis a reeleição e apoiou a candidatura de Cristina. “Ela é muito melhor do que eu”, disse para explicar a decisão. Houve resistência. Kirchner dizia “eu tenho jogo de cintura, vou, volto, vocês têm que saber que ela não volta, ela vai e vai”.

Empossada em 2008, Cristina aumentou de cara os impostos ao agronegócio. Nascia o kirchnerismo. A sociedade argentina foi testemunha da voracidade de mil famílias. Os oligarcas bloquearam estradas por três meses. O povo lotou as praças.

Perdemos a batalha no Congresso, o vice-presidente, presidente do Senado, votou contra o projeto de lei de Cristina. Kirchner respondeu: “se não dobrarmos a aposta, nos deixam fora da história”. Colocou nome aos bois e denunciou a participação do maior grupo de comunicação argentino, o Clarín, no agronegócio, e sua cumplicidade com a ditadura. Foi quando fez aquele discurso histórico em que disse “o que acontece, Clarín? Tá nervoso?”.

Néstor Kirchner decidiu ser candidato a deputado, em 2009, por Buenos Aires. Perdeu a disputa contra um empresário colombiano, pela traição de alguns dirigentes peronistas que valorizaram mais pesquisas eleitorais do que a transformação da pátria.

Após a derrota, Kirchner foi dar um discurso em uma praça de San Telmo, onde um grupo de intelectuais, do coletivo Carta Aberta, analisavam a eleição. Ele levantou a moral da tropa, disse que a história não acabava ali e que era preciso continuar organizando a população e divulgando nosso projeto.

Como deputado, votou só uma lei: a lei de matrimónio igualitário. O então bispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio, hoje Papa Francisco, foi contra. Bergoglio concordava com a união civil, mas a Igreja não queria saber nada de falar de matrimônio. 

Em maio de 2010 assumiu como primeiro Secretário Geral da Unasur. Mediou o conflito entre Venezuela e Colômbia para evitar uma resolução armada. a América Latina se consolidou como território de paz. Os presidentes da região lembram de Kirchner como um latino-americanista que militou pela integração regional.

]A Frente Ampla, do Uruguai, sabe do apoio e da força que recebeu de Kirchner para ganhar as eleições de 2004. Evo Morales reconhece publicamente o apoio do Kirchner quando Bolívia nacionalizou uma refinaria da Petrobras. Os empresários ameaçaram deixar a Bolívia, Kirchner ligou e disse “fica tranquilo Evo, e que a imprensa escute, se eles não investem, Argentina investirá”.

A parceria estratégica com o Brasil foi histórica. Entre tantas coisas, Kirchner e Lula estabeleceram o espanhol e o português como língua estrangeira nas escolas públicas. O que dizer da amizade dos governos Kirchner com a Venezuela de Chávez? Só lembrar das mobilizações em Buenos Aires quando faleceu Chávez. O apoio de Chávez no início do governo Kirchner foi fundamental.

No dia 27 de outubro, ocorria o último Censo na Argentina. A população aguardava em casa os censitários, quando os telefones dos que amávamos a Néstor Kirchner começou tocar com a pior notícia. Após responder o Censo a população foi para Praça de Maio. A praça foi lotando com pessoas de todos os estados do país. O silêncio era gritante, como a dor que cada um sentia. O sentimento era de orfandade.

Naquela quarta-feira, o velório foi em Calafate, onde Kirchner faleceu. Na quinta, o velório foi na Casa Rosada e éramos milhões. Lembro de Cristina vestida de luto, óculos escuros, acariciando o caixão. O povo, o povão, foi agradecer Kircher por ter mudado nossas vidas. Sobre o caixão, os lenços das Mães da Praça de Maio.

Trabalhadores da construção civil entregaram à Cristina os capacetes amarelos, ela colocou também sobre o caixão. O tenor Ernesto Bauer, após esperar em uma imensa fila, entrou na Casa Rosada cantando o Ave Maria. Impossível não arrepiar lembrando isso.

Há dez anos, morreu no sul desse continente um latino-americano que sempre entendeu que o inimigo é o império. Combateu contra ele do único jeito que é possível combater: unidos e organizados. Fez de tudo para unir a Pátria Grande e cumprir o sonho de San Martín e Bolívar. Reconheceu-se filho das Mães e Avós da Praça de Maio. Organizou os trabalhadores e trabalhadores, a juventude.

Milhões de argentinos e argentinas levam tatuado no corpo o rosto de Néstor. Isso só consegue quem muda a vida e a realidade da população. Presto esta homenagem para um companheiro “comum mas com responsabilidades importantes”, como dizia ele. Impossível não chorar por ti neste dia, Néstor.

A poesia a seguir, escrita por Joaquín Enrique Areta, companheiro Montonero desaparecido com 23 anos, foi lida por Néstor em vida: 

Gostaria de ser lembrado

Gostaria de ser lembrado sem chorar
nem arrependimento
gostaria de ser lembrado por ter construído caminhos
por ter estabelecido uma direção
porque eu toquei sua alma
porque se sentiram amados, protegidos e ajudados
porque eu interpretei seus desejos
porque canalizei seu amor.
Gostaria de ser lembrado com o riso dos felizes
a segurança dos justos
o sofrimento dos humildes.
Eu gostaria de ser lembrado com piedade por meus erros
com compreensão para minhas fraquezas
com carinho pelas minhas virtudes,
se não, eu prefiro o esquecimento,
será a punição mais severa por não ter cumprido meu dever de homem.

*Correspondente da Agencia Paco Urondo.

Edição: Rodrigo Chagas