DESMATAMENTO

Artigo | Os incêndios vieram em caravelas

Depois da invasão, restou onça morta na estrada, povos das florestas exterminados, povo negro assassinado e doenças

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
"Em Pindorama a destruição ambiental e o genocídio dos povos originários começaram em 1500 e o sequestro e escravização do povo negro da longínqua África em 1550" - Takumã Kuikuro/Fotos Públicas

Será que a covid veio para nos acordar? Deixar o seu último suspiro, espirro de raiva acumulada que explode como fogo de um vulcão, ou como a força do fogo exalado de um dragão. Só isso para nos salvar.

(Mariam Pessah, 2020)

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Ao chegar em Abya Yala, em 1492, os homens das caravelas vindas do Ocidente a batizaram (como é do gosto cristão) de Novo Mundo. Eles espalharam a fake news de que haviam descoberto terras novas. Mas já existia gente por aqui. Muita gente, muitos povos, organizados e integrados à natureza, coisa que eles, os que chegaram de outros oceanos, ainda não tinham alcançado.

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Novo Mundo e Velho Mundo, uma questão de ponto de vista. Mas esses que invadiram os espaços de quem aqui vivia se consideravam avançados e, decerto, tinham razão. Sabiam muito mais sobre o “novo” continente do que os seus próprios habitantes. Por isso, os patriarcas barbudos do Velho Mundo consideraram que tudo estava por re-fazer... Foi quando tudo começou. Re-começou.

Pindorama, foi invadida um pouco depois, em 1500. Pindorama não tinha forma, nem fronteira, vejam só que selvageria, e acabou sendo denominada de Brasil. Brasil de pau-brasil, árvore cuja casca era utilizada para tingir, que foi rapidamente extinta pela sua exploração extensiva.

Pero Vaz de Caminha, referindo-se à Pindorama, na carta escrita ao rei de Portugal, afirma:

“(...) Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecute, bastaria. Quando mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé. E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi.(...)”

Parece que sua Alteza seguiu os conselhos de Pero, o escrivão, e se empenhou em salvar essa gente. Uma gente esquisita, que andava pelada e tratava bem desconhecidos que aqui aportaram cheios de roupas e capas e botas e espingardas...

De lá até aqui as florestas foram minguando e os vírus engordando. Não só aqui, mas também no Velho Mundo.

Os incêndios vieram nas caravelas

A partir de 1492, o capitalismo nascente entrou nos navios dos “descobridores” e aqui se amparou. E daqui mamou o leite da terra nova. Tudo sugou como um vampiro. Como Vlad o empalador, soberano da Romênia famoso por sua crueldade na luta contra o império otomano.

Não, o invasor não veio nos porões dos navios negreiros. Veio na proa, bebendo vinho português ou espanhol e pensando que estava chegando na Índia. Por isso batizaram de “índios” os múltiplos e diversos povos que aqui viviam. Um equívoco pouco significativo para quem tem objetivos tão importantes e elevados.

No Brasil, os habitantes originários se uniram pela história e pela dor ao povo negro sequestrado e escravizado. Contaminados pelo sangue dos invasores-estupradores vindos de Portugal, gerando aquilo que hoje chamamos de brasileiros e brasileiras!

Mas, como dizem as mulheres negras: “vivemos até hoje num apartheid”.

O capital acumulou com o trabalho dos povos negros e indígenas, sobre o corpo das mulheres negras e indígenas. E também das mulheres europeias, curandeiras, conhecedoras de plantas e poções, queimadas vivas pela Inquisição para que a medicina fosse monopólio masculino e para que as mulheres perdessem seu poder. Bruxas amantes do demônio. No mesmo período por coincidência ocorre o cercamento dos campos comunais para viabilizar a criação extensiva de ovelhas, favorecendo apenas alguns senhores e gerando a fome, o desemprego e a destruição de inúmeras comunidades no chamado velho continente.

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Os incêndios vieram nas caravelas

No Brasil colônia, as queimadas eram promovidas pelos donatários, os donos das sesmarias, com o singelo propósito de ‘limpar” os campos para a expansão da monocultura. As árvores também foram derrubadas para a escavação de minas.

Eram tão bonitos e corajosos aqueles homens fortes que governavam terras imensas. E os heróis bandeirantes? Os que colecionavam orelhas de indígenas? E as escravas negras que serviam de cavalinho para as crianças brancas?

Nada disso aparece na escola. Aparece sim a mãe preta. Aquela mulher bondosa que engravidava apenas para amamentar os filhos e filhas dos senhores brancos. Os próprios filhos eram vendidos no mercado. Como gado que os senhores do Sul criavam e faziam charque. E maltratavam. Animais e pessoas negras e indígenas.

Hoje os incêndios já não resultam somente de queimadas. São promovidos regular e metodicamente pelo agribusiness (cujo nome em inglês aparenta modernidade, mas não é mais que o casamento do velho latifúndio com o capital internacional - segundo Christiane Campos). Um casal incestuoso formado pelos produtores rurais descendentes dos europeus, aqueles que defendem os bois bombeiros, com o grande capital internacional, que se diz até mesmo ambientalista... O mesmo capital que invadiu as terras consideradas selvagens, e lá queimou suas bruxas. Que levou nosso ouro. E prata. Pau-Brasil. Açúcar. Café. E vida. E sangue.

Os incêndios vieram nas caravelas

O chamado Novo Mundo possui um mundo ancestral correndo nas veias. A nova versão trazida de fora introduziu segregações, preconceitos e capitalismos. O valor da produção para a acumulação, não para a reprodução da vida. O valor do trabalho humano medido pela produtividade, não pelo prazer da criação.

Em Pindorama a destruição ambiental e o genocídio dos povos originários começaram em 1500 e o sequestro e escravização do povo negro da longínqua África em 1550. A partir daí nada mais parou.

O litoral nordestino foi transformado em deserto. A Mata Atlântica foi quase exterminada. Agora a Amazônia e o Pantanal estão quase no ponto de não-retorno. Isso significa a destruição de todos os povos originários e de todos os animais e plantas e o aprofundamento do abismo entre raças, classes, gêneros e sexualidades.

Essa tragédia está acontecendo em todo o mundo, em graus diferentes, mas um de seus componentes centrais é a destruição da Amazônia. Como fala e escreve repetidamente Eliane Brum: a Amazônia é central, não a Europa e os EUA.

François Chesnais (2020), comparando com a crise de 1929, considera que “(...) a crise da covid-19 é uma consequência das relações do capitalismo com a natureza. É uma crise sanitária da era do Antropoceno. Representa um choque exógeno, enquanto a crise de 1929 foi resultado das contradições internas do movimento de acumulação do capital. (...) Em 1929, a economia mundial era internacionalizada, mas não globalizada. Demorou mais de um ano para que a crise chegasse à Europa. Em 2020, foram necessárias apenas algumas semanas para que a paralisação da produção na China se transformasse em crise global.”

Agora, é a onça morta na estrada. São os povos das florestas exterminados e expulsos de suas terras. É o povo negro assassinado pelas milícias. E é o vírus mais sofisticado de todos, a covid-19, segunda geração.

Impedir a destruição final é tarefa para ontem. Apenas a sabedoria e a raiva acumulada em Pindorama, conhecida pelos seus algozes como Brasil, e por toda Abya Yala, batizada pelos invasores como Novo Mundo, pode nos salvar.

* Clarisse Chiappini Castilhos é economista

Referências:

CAMPOS, Christiane S. S. (2011) A face feminina da pobreza em meio à riqueza do agronegócio - Outras Expressões/Clacso, Buenos Aires  

CHESNAIS, F. (01.05.2020) - entrevista Tutaméia  

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Marcelo Ferreira