Coluna

O “estupro culposo” e o sistema de Justiça: a força das aspas de um “novo” tipo penal

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Ato em solidariedade a Mariana Ferrer em frente ao Palácio da Justiça em Porto Alegre - Comunicação Levante Popular da Juventude
Que venha o bom jornalismo para abrir o debate público da defesa dos direitos

Por Marilia Lomanto Veloso*

O toque dele me incomoda, mas não quer dizer que não goste dele, mas não consigo relaxar, é como se ele fosse me violentar ou me machucar. Mas não posso dizer isso a ele [...] às vezes aceito, finjo, mas fico destruída ao final.

Milene Teonilia Neves (Psicóloga – Relato de vítima)

“As aspas (“”) representam um recurso gráfico empregado aos pares na produção de textos sendo que uma serve para abrir e outra para fechar o discurso”. Daniela Diana, professora licenciada em Letras, simplifica o conceito de “aspas” e explica ainda que se trata de um “sinal de pontuação utilizado na produção textual para enfatizar palavras ou expressões, além de indicar citações de algum texto”. As reflexões propostas neste espaço, desse modo, serão plenas de “aspas”, em merecida homenagem ao que significam tais “figuras gêmeas” nas narrativas, tanto para “o dito” quanto para o “não dito”, mas perfeitamente “entendível”.

Não obstante a singeleza de sua destinação, as “aspas” subiram ao palco e protagonizaram uma inusitada (e providencial) mobilização em torno de seu inteligente uso pelo The Intercept Brasil, para noticiar um fato “jurídico” que envilece de modo indesculpável o sistema de Justiça e empalidece quem dispensa um mínimo de respeito à pessoa humana.

Nunca um simples e corriqueiro recurso gráfico produziu tanto barafunda, abriu espaços para debates tão palpitantes, pautas emblemáticas, levantou coletivos, sensibilizou a mídia e estabeleceu agendas imediatas (e necessárias) sobre o tema doloroso de uma das mais brutais e aviltantes formas de violência contra a dignidade sexual: o estupro.

A sociedade se indignou ao visualizar as cenas insultantes e desonrosas, dentro de um ambiente jurídico, ao vivo e em cores, patrocinadas pelo sistema de Justiça de Santa Catarina, por ocasião de uma audiência onde se apuravam denúncias de estupro.

A vítima, uma jovem “blogueira”, bonita e esvoaçando liberdade no modo “descolado” que certamente seduz seus seguidores, ousou interromper o “sono sagrado” do moralismo cabotino e sacripanta que essa mesma sociedade exibe e consegue burlar a “libidinagem” implícita na visão com que interpreta o comportamento das pessoas que rompem paradigmas estabelecidos pelas classes que dominam e definem o modo de se comportar, de se vestir e de se comunicar.

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O que fez a jovem “blogueira”, afinal que merecesse essa “drenagem” moral quando foi à justiça em busca de resposta à violência de que foi vítima? Como explicar as condutas da defesa do acusado, do Ministério Público, do Poder Judiciário, diante do espetáculo medieval, afeiçoado à Inquisição que torturava “bruxas”, reproduzido pela mídia, pelas redes sociais, causando perplexidade, manifestações de repúdio e motivo mais que óbvio para a intervenção rigorosa (e real) das instâncias de controle dos sujeitos processuais que desceram de suas funções, violaram os respectivos Códigos de Ética, Leis Orgânicas e garantias constitucionais de respeito à dignidade da pessoa humana? Quais os desafios para as mulheres, alvos preferenciais de condutas violentas praticadas por quem deveria garantir a ordem jurídica e as conquistas civilizatórias das mulheres, que surfaram ávida e incansáveis nas “ondas” do feminismo?

Verinha Kollontai (Feminismo sem demagogia), em análise sobre a cultura do estupro, lembra a trajetória histórica (e dolorosamente real) dessa conduta que fere de modo irreversível o direito à liberdade do corpo, a dignidade da pessoa, que suga, pela violência da posse não consentida, a alma de quem está em situação de vulnerabilidade e impotência física para defender seu direito de entrega sexual.

Em sua abordagem, a autora faz referência a Friedrich Engels para explicar a violência de gênero como “um reflexo direto da maior derrota histórica do sexo feminino” quando foram subtraídas do espaço de trabalho para o encarceramento doméstico. Enquanto algumas passavam a servir “como reprodutoras de herdeiros para os homens que detinham os meios de produção”, outras, as mulheres pobres, eram impelidas à prostituição.

Para a autora, a violência foi o método utilizado pelos homens para, em primeiro passo, promoverem a segregação “no lar” e depois, se valiam de afirmações ideológicas para desculparem hierarquias de grupos, dentre as quais, a ideologia de gênero, justificando a subalternidade feminina.

O estupro, nesse contexto, se afirmou culturalmente como uma “punição social”, estabelecendo conteúdos e regras que, na hipótese de rupturas, dariam lugar à situação extrema da violência. Desse modo, a casa é o lugar de proteção, a mulher precisa se preservar, para escapar à concupiscência natural dos homens. O castigo se dá por um suposto rompimento com os papéis de gênero rigidamente fixados. (https://www.geledes.org.br/)

Milene Teonilia Neves, em pautas terapêuticas com casais, (A difícil arte de ser mulher após abuso sexual ou estupro), traduz a dor que expressam as mulheres que sofrem essa prática aviltante quando relata que “em alguns casos é como se o feminino não existisse, está adormecida”. A vítima se refugia no trabalho, em compromissos que afastem do contato com suas dores.

O Estado, na função político-jurídica de “feitor da Lei e da Ordem” precisava alcançar uma resposta penal que castigasse o autor dessa prática ignóbil contra a liberdade de entrega do corpo e, de fato, isso fez ao longo das legislações repressivas.

O Código Penal ajustou o repertório punitivo à contemporaneidade e tipificou o estupro no art. 213: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

O embate que “viralizou” e produziu miríades de comentários, protestos, notas, palpites teóricos, fluiu em torno da expressão “estupro culposo”, fruto da criatividade do jornalismo do Intercept. Vale comentar o que impõe a lei.

Em princípio, não existe essa figura típica no Código Penal. Bastaria a leitura do Art. 18 para “desocultar” o imbróglio, quando descreve no Inciso I, que o crime se diz doloso “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”.

Mas é o Parágrafo Único do Art. 18 que fulmina de morte qualquer tentativa de tornar “culposo” um fato definido como crime, sem previsão na lei, quando dispara: "Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente” (grifos nossos). Garantido, desse modo, o princípio da legalidade, consagrado no Art. 5º XXXIX da Constituição de 1988 e no Art. 1º do CP, essencial no Estado Democrático de Direito: Não há crime sem lei anterior que o defina, nem há pena sem prévia cominação legal.

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Nesse sentido, o estupro só é punível na modalidade “dolosa” significando dizer que ninguém pratica essa forma abjeta de conduta por “imprudência, imperícia ou negligência”, descrição de crime culposo. Se é verdade que o legislador puniu o estupro, parece que não é menos verdadeira a presença de um “pacto macabro” na sociedade historicamente machista, patriarcal, para fazer da mulher, uma “vítima de sua própria luxúria”.

O que o Intercept quis foi “tonificar” e dar a merecida ênfase ao episódio da vítima que, cercada de elementos probatórios anunciados ao sistema de Justiça, foi ainda mais brutalizada, despida de sua dor e ferida em sua dignidade, quando publicamente vilipendiada pelos sujeitos que participavam da peça dantesca exposta à opinião pública.

O episódio infeliz, a desastrada atuação do Aparato Repressivo de Estado (Poder Judiciário e Ministério Público) e, mais grave, da defesa do acusado, traduziu para a opinião pública a postura indecorosamente desrespeitosa, prepotente e preconceituosa dos atores do sistema, contrária ao que disciplinam os respectivos Códigos de Ética e Disciplina.

O silêncio cúmplice e pusilânime do Ministério Público, a ausência de comando, a inércia e a” falta de pulso” do magistrado, acaçapado ao “xilique” de um advogado que não soube se portar com a altivez que se espera de um profissional do direito, revelaram um “barco à deriva”, deixando a jovem gritar e chorar sua humilhação. Era, sem dúvida, uma outra forma de “constrangimento”, não sexual, mas contra a sexualidade e a essência humana da “mulher quase menina” fatalizada em sua esperança no sistema de justiça onde buscou abrigo e teve como proteção, ser tripudiada em sua dignidade .

Paula BianchiAlexandre de Santi, em comentários explicativos à utilização do termo “estupro culposo”, no artigo “O caso Mariana Ferrer e o papel do jornalismo na sociedade”, com lealdade jornalística surpreendente, formulam serena autocrítica sobre a “temerária” tipificação que explodiu em debates calorosos sobre todo o cerco autoritário, desonroso, antiético e violento dos protagonistas da audiência da jovem militante das redes sociais.

Expressam os autores que a expressão resumia o que tantas mulheres experimentaram ou viveriam: “o de serem, sempre elas, as responsáveis pela violência que sofrem [...] Foi estuprada porque provocou”. Assinalam ainda a possibilidade de conhecimento público sobre o tratamento dado pela justiça brasileira aos casos de estupro, ainda que as vítimas se amparem em provas solidas. Na percepção judicial, para os jornalistas, “a mulher não merece justiça porque ela não foi ainda mais explícita sobre não dar consentimento durante o episódio”.

As “aspas”,(benditas aspas) nessa dolorosa e impactante tragédia, se não construíram um tipo penal, exerceram uma função política e social do mais elevado e inesperado sentido. Que venha o bom jornalismo para abrir o debate público de pautas que honrem esse instrumento que tanto pode contribuir para a tradução da ordem democrática, da defesa dos direitos! Aplausos para esse “repente jornalístico legislativo” da linguagem de sinais para a rebeldia da resistência apta a estancar a arrogância togada que borbulha do autoritarismo do sistema de justiça e da advocacia sem rédeas éticas.

Com Paula BianchiAlexandre de Santi, louvamos a assertiva de que “a expressão (“estupro culposo”) capturou um sentimento coletivo silenciado e deu voz a quem sequer sabia como falar”.

*Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, Mestra e Doutora em Direito Penal, Professora aposentada da UEFS. Promotora de Justiça da Bahia, aposentada, Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos, membro do CDH da OAB/BA, da AATR, da RENAP e da ABJD.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rogério Jordão