Sem alarde, representantes do agronegócio se articulam para obter perdão das dívidas bilionárias do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural). Nos últimos meses, a Delegacia da Receita Federal em Uberlândia (MG) passou a cobrar e multar devedores que estão em situação irregular em todo o país, o que motivou uma nova ofensiva da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) junto ao governo federal para conseguir o que chamam de “anistia” das dívidas.
O Funrural incide sobre a comercialização dos produtos para garantir que o empregador rural possa se aposentar. Para pessoas físicas, a alíquota é de 1,3%. Para pessoas jurídicas, 1,8%.
Em abril do ano passado, o coordenador de Arrecadação e Cobrança da Receita Federal, Marcos Hubner Flores, informou que o valor estimado das dívidas estava entre R$ 34 bilhões e R$ 40 bilhões, mesmo com o programa de regularização oferecido pelo governo.
O Brasil de Fato aguarda retorno da Receita Federal e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional para confirmar o valor atualizado das dívidas com o Funrural e o nome dos maiores devedores. Segundo a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco), os débitos que continuam pendentes são estimados em R$ 12,5 bilhões.
Histórico
O argumento da CNA para justificar o pedido de anistia é que o Poder Judiciário vem tomando “decisões contraditórias” sobre o tema, o que causa incerteza e insegurança nos produtores.
Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela inconstitucionalidade da cobrança nas operações entre produtores rurais. Sete anos depois, a Corte alterou esse entendimento e decidiu que a cobrança era devida, tornando irregular a situação de milhares de pessoas físicas e jurídicas.
A Lei 13.606, de 2018, mudou novamente o cenário, isentando de contribuição previdenciária as vendas de produtos específicos, como sementes e mudas e animais destinados à reprodução ou criação pecuária, desde que vendidos por entidades registradas no Ministério da Agricultura.
Para Mauro Silva, presidente da Unafisco, a delegacia de Uberlândia está correta ao cobrar o pagamento e impor multas: “Se o governo vai conceder ou não o perdão, quem tem que dar conta disso é o meio político, e não a Receita, que faz um trabalho técnico”.
O dirigente ressalta que a reforma da Previdência foi feita com o argumento de aliviar as despesas, portanto, “não faria sentido dar essa anistia e esse perdão, que impactam nas receitas previdenciárias”.
Em 2018, quando foi lançado o Programa de Regularização Tributária Rural (PRR), para refinanciar as dívidas do Funrural, a Receita Federal informou que apenas 1% do total da dívida era de produtores rurais individuais. Os outros 99% eram de empresas.
“Os grandes devedores e grandes interessados são as empresas do agronegócio”, afirma Silva. “A lei fala em relação aos ‘adquirentes do produto rural’, que estão todos concentrados no setor agroexportador. Agora, com a pandemia, essas empresas estão lucrando como nunca, exportando o que deveria ser vendido no mercado interno e provocando aumento de preços no Brasil”.
De acordo com pesquisa da própria CNA, divulgada em agosto, o Produto Interno Bruto (PIB) do agronegócio brasileiro avançou 4,65% nos primeiros cinco meses do ano. De janeiro a setembro, as exportações atingiram US$ 77,9 bilhões – o equivalente a R$ 430 bilhões –, gerando um superávit recorde para o setor.
O PIB brasileiro, por sua vez, tem uma projeção de queda de 5,8% para 2020.
Pressões
Além da atuação constante da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), os ruralistas enviaram em outubro, por meio da CNA, um ofício ao Ministério da Agricultura do governo Jair Bolsonaro (sem partido) pedindo uma resolução para o impasse do Funrural. A Confederação também solicitou uma audiência com a Receita Federal para esclarecimentos.
Em 2018 e 2019, quando o Funrural foi debatido no Congresso Nacional, Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, disse estar “ao lado do produtor” e considerou “urgente” a decisão sobre a anistia das dívidas.
Desde quando era deputado federal, Bolsonaro defende a extinção das cobranças. Essa foi uma de suas promessas de campanha ao agronegócio, há dois anos. Durante a pandemia, o presidente vem atendendo a várias reivindicações do setor, como facilidades para acesso a crédito e financiamento de dívidas não previdenciárias e desoneração nas contribuições relativas à seguridade social e em taxas de cartório.
Leia também: Bolsonaro veta socorro para pequenos produtores, mas libera benesses para o agronegócio
“[O perdão das dívidas] é um estímulo à sonegação, ao planejamento tributário agressivo. Não tem nenhuma conexão com geração de emprego, com o interesse público. É uma forma de transferir dinheiro do Estado, ou seja, de todos nós, para os ricos que são donos dessas grandes empresas”, completa Silva, da Unafisco. Ele considera Bolsonaro “uma ameaça inédita”.
Coordenador do Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas Agrário e Agrícola e assessor do Núcleo Agrário da Bancada do Partido dos Trabalhadores (PT) no Congresso, Gerson Teixeira pondera que a medida enfrenta rejeição em Brasília.
“É lógico que, na linha de frente, está a Tereza Cristina [ministra da Agricultura], como porta-voz dos grandes frigoríficos, fazendo pressão sobre a Fazenda e sobre o próprio Bolsonaro. Mas o contexto é muito complicado para eles, com a queda brutal da economia”, ressalta.
“Não tem a menor legitimidade essa demanda. Eles já tentam isso há tempo, e não conseguem prosperar. É claro que, nesse governo, tudo pode acontecer. Mas tem uma reação forte da área técnica do governo. A Receita Federal e a Procuradoria são totalmente contra”, finaliza Teixeira.
O Brasil de Fato entrou em contato com a CNA, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.
Edição: Rogério Jordão