ELEIÇÕES 2020

Artigo | Recolhendo cacos: o resultado do primeiro turno em João Pessoa (PB)

Depois da disputa fratricida que levou à pulverização do campo democrático-popular , é preciso fazer um balanço

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Trilhar o caminho da resistência é preciso - Internet

O resultado das eleições municipais de João Pessoa confirmam, infelizmente, as piores previsões, como já apontávamos há mais de um mês (leia aqui e aqui). A crônica dessa derrota anunciada exigiria algumas laudas para detalhar fatos e conflitos no seio da esquerda pessoense que beiram o realismo mágico de um García Márquez. Não há aqui nem espaço nem talento para tanto.

O fato é que chegam ao segundo turno duas candidaturas ligadas a oligarquias tradicionais (os Ribeiro Coutinho do PP e Maranhão do MDB), reabilitadas depois de derrotas significativas nos últimos anos. Duas candidaturas que reivindicam relação com o bolsonarismo.

Aliás, a hecatombe local só não foi pior porque, em nível nacional, Jair Bolsonaro teve muitos prejuízos, certamente frutos da diminuição do auxílio emergencial, da má condução da pandemia e dos absurdos relacionados à vacina pra covid-19, além da derrota de Trump nos Estados Unidos, entre outros. A sagacidade das raposas locais deve buscar manter certa distância do governo federal, pelo menos até o segundo turno.

Na Câmara de Vereadores, o saldo também é negativo. Das 27 cadeiras, apenas uma foi ocupada por uma mulher, Eliza Virgínia (PP), cujo reacionarismo a põe no patamar da ministra Damares Alves. A esquerda só conseguiu levar um único nome, Marcos Henriques (PT), e perdeu a vaga de Sandra Marrocos. O PSB, que foi o partido mais votado pra Câmara em 2016, esteve longe de atingir o coeficiente eleitoral em 2020.

Depois da disputa fratricida que levou à pulverização do campo democrático-popular no pleito, é preciso fazer um balanço com a frieza que o momento exige. A primeira constatação é que a esquerda perdeu influência na capital. E muita. Obviamente isso reflete, em parte, uma tendência nacional. Por exemplo, o PT, o maior partido de esquerda, que já tivera seu pior desempenho nas eleições municipais em 2016, com 254 prefeituras, perdeu 75 e conquistou apenas 179.

Está em 11º lugar, de acordo com levantamento do portal G1, atrás de: MDB (774 prefeituras, 261 a menos que em 2016), PP (682 municípios, crescimento de 187), PSD (aumento de 113, chegando a 650), PSDB (512 cidades, 273 a menos, indo da 2ª para a 4ª posição), e o reabilitado DEM (o que mais cresceu em termos absolutos, ganhando mais 193 prefeituras e indo a 459), além de PL (345), PDT (311), PSB (que caiu de 403 para 250), PTB (212) e Republicanos (208).

Claramente, o beneficiário dessas eleições foi o assim chamado “Centrão”, fortalecido pela relação fisiológica com o governo federal, e o DEM, expressando a força do agronegócio, base de sustentação do atual bloco no poder.

No entanto, diferentemente do que vaticina a grande mídia empresarial, o PT e a esquerda estão longe de estar mortos, especialmente quando se considera a disputa no grupo que reúne as 26 capitais e as 70 cidades com mais de 200 mil eleitores (e nas quais é possível haver 2º turno), o chamado G96. Tais cidades reúnem a maior parte do eleitorado brasileiro e têm um peso político especial.

Nesse grupo, por exemplo, o PT disputa em 15 das 57 cidades em que haverá 2º turno, o PSOL em duas (São Paulo e Belém) e o PCdoB em uma (Porto Alegre). A título de comparação, o PT (que chegou a conquistar 25 destes municípios em 2008), logo após o golpe contra Dilma Rousseff, venceu apenas em Rio Branco em 2016. O cenário de 2020 indica que a esquerda, ainda combalida, parece ter conseguido estancar a sangria e recuperar fôlego. Mas uma análise mais detalhada só será possível após 29 de novembro.

Em João Pessoa, todavia, é preciso uma avaliação crítica do processo local, pois seu resultado não é mero espelhamento do cenário nacional. Analisemos os dois principais partidos, PT e PSB.

Em 2016, o PT lançou candidatura puro sangue, num arroubo de esquerdismo e purismo, buscando coesionar a militância após o golpe que destituíra Dilma Rousseff da presidência dois meses antes. Resultado: obteve 16.582 votos para prefeito (4,42% dos votos válidos), pouco mais do que os cerca de 15.660 votos obtidos pelos candidatos a vereador.

Em 2020, mesmo em aliança com o PCdoB, a candidatura alcançou apenas 1,49% dos votos (5.431 em termos absolutos). Ou seja, chegou a pouco mais de ⅓ dos votos da já pífia votação anterior. Para vereador, conseguiu 15.151 votos e alcançou o coeficiente eleitoral de pouco mais de 14 mil, voltando a eleger um vereador.

A guerra interna do PT certamente pesou. A manutenção de uma candidatura desautorizada pela Direção Nacional, a judicialização da luta interna, o processo de intervenção da DN e a destituição do Diretório Municipal, as suspeitas de colaboração com o candidato bolsonarista Wallber Virgolino para retirar o vídeo de apoio do ex-presidente Lula à candidatura de Ricardo Coutinho do guia eleitoral deste, e a abertura de processo de expulsão da presidenta municipal destituída e do candidato Anísio Maia são todos episódios trágicos dessa crônica. Para não falar dos vitupérios de parte a parte, numa baixaria que faria corar até os mais despudorados.

É possível seguir alimentando a narrativa de que o resultado deveu-se ao alegado autoritarismo da Direção Nacional, ao maquiavelismo de Ricardo Coutinho, ao neoestalinismo de Gleisi Hoffmann, ao oportunismo de petistas locais que assumiram o comando da sigla enquanto comissão interventora, ao erro de julgamento de Lula (ainda se tem certa pudicícia quando se trata de criticar o ex-presidente).

Todos os rótulos acima podem ajudar a construir uma identidade de grupo, alimentando o espírito de círculo do qual trata Lênin em Um Passo em Frente, Dois Passos Atrás (1904). Podem, também, cristalizar convicções, sedimentar certezas e turvar, apologeticamente, a análise do real.

Transferir a responsabilidade pelo resultado final impedirá uma autocrítica regeneradora, pois a questão continuará em aberto: por que a maior parte dos filiados e do eleitorado petista da capital optou pela campanha de Ricardo Coutinho tão logo esse anunciou sua candidatura? A verdade é que a percepção de que essa era a candidatura mais forte no campo progressista para se colocar no pleito rapidamente se espraiou e se sobrepôs às justificações (como as alegações de respeito à democracia interna, a decisão de última hora de Ricardo Coutinho, a rejeição desse nas pesquisas, etc.).

A compreensão da necessidade da unidade é a causa real desse deslocamento. Justificar a fragorosa derrota com os rótulos acima é subestimar a inteligência de parte da militância e do eleitorado.

Também é fato que o antiricardismo, enquanto posição de princípio de alguns setores, veio à tona de maneira nítida (como bem o prova o mal disfarçado contentamento de certos petistas com a condenação do ex-governador pelo Tribunal Superior Eleitoral cinco dias antes das eleições), demonstrando que seu objetivo principal era construir sua hegemonia na esquerda pessoense.

Sendo assim, o balanço é ainda mais negativo: se numericamente a votação demonstrou o isolamento a que se reduziu a linha adotada pelo diretório municipal destituído, a decepção e o constrangimento de parte expressiva da militância e do eleitorado arranha profundamente a imagem do partido. Pior, o “esticar a corda” levou o partido à fratura. Nem mesmo coesão, como minimamente se obteve em 2016, entra no saldo do presente pleito.

Hegemonia e legitimidade se constroem na coerência entre análise de conjuntura e ação política: se o momento exige a unidade das forças progressistas para derrotar o bolsonarismo e o lavajatismo, era mais do que necessária a aliança em torno de Coutinho. Parte considerável do eleitorado petista percebeu isso e aderiu ao pessebista.

Mesmo as candidaturas do PT a vereador mais bem sucedidas o foram, entre outros fatores, por perceber esse deslocamento do eleitorado e, declaradamente (como o coletivo Nossa Voz e Marcos Bosquiero) ou não (como Marcos Henriques e Sandra Marrocos, através de seus apoiadores), buscarem materializar a aliança praticamente.

Sem a devida clareza desses elementos, vai ser difícil ao Partido dos Trabalhadores superar o grau de isolamento a que chegou na capital paraibana nos últimos quatro anos. O momento agora é de fazer um balanço sério, reconhecer erros e excessos de parte a parte, pacificar o partido e realinhá-lo. O PT ainda é a principal referência entre os setores organizados da classe trabalhadora em João Pessoa, especialmente no movimento sindical. A perpetuação de seus erros e crise só interessa às oligarquias e às forças reacionárias.

O Partido Socialista Brasileiro certamente é o maior derrotado nas eleições municipais.

O Partido Socialista Brasileiro certamente é o maior derrotado nas eleições municipais. Em 2016, inchado de políticos interessados em manter boas relações com o então governador Ricardo Coutinho, elegeu 52 prefeitos, sucesso que se repetiu com sua sucessão em 2018, elegendo João Azevedo no primeiro turno. 

Com a Operação Calvário e a traição do atual governador, que se bandeou para o Cidadania arrastando boa parte dos prefeitos eleitos, o partido minguou. Em 2020, elegeu apenas quatro prefeitos. Perdeu inclusive a reeleição no Conde, cuja gestão de Márcia Lucena, também vítima da perseguição judicial da Calvário, era uma espécie de vitrine.

Em João Pessoa, o resultado foi catastrófico. Além de chegar apenas à sexta posição na eleição majoritária com 38.969 votos (10,68%), na proporcional alcançou apenas 5.705 votos, muito distante do coeficiente eleitoral. Em 2016, a então candidata a prefeita, Cida Ramos, também derrotada no 1º turno, atingira 33,54% dos votos válidos (125.146 no total) e o partido alcançara 43.660 votos na eleição proporcional, elegendo quatro vereadores.

Não se pode minimizar o impacto do lawfare de que o ex-governador e as principais lideranças do PSB foram vítimas. A Operação Calvário, reproduzindo o modus operandi da Lava-Jato, inclusive no conluio com a mídia, conseguiu, em apenas dois anos, perpetrar um cerco até agora inexpugnável. Numa candidatura isolada, principal alvo de todas as quatro principais candidaturas de direita e extrema-direita, o aniquilamento eleitoral encontrou sua bala de prata na condenação de Ricardo Coutinho, pelo Tribunal Superior Eleitoral, em Ações de Investigações Judiciais Eleitorais (AIJE’s).

Em julgamento marcado repentinamente para cinco dias antes das eleições, num processo no qual já fora absolvido pelo Tribunal Regional Eleitoral, ficou claro, mais uma vez, a prática do lawfare, gerando confusão no eleitorado, bombardeado com a informação de que Ricardo Coutinho estaria inelegível no pleito do dia 15.

De fato, foi acertada a manutenção de sua candidatura como instrumento de denúncia e enfretamento à politização do poder judiciário, tal como foi linha justa a manutenção da candidatura Lula em 2018 até quando possível para demonstrar a perseguição judicial da Lava-Jato. Mas, se é à operação de cerco e aniquilamento a que se deve a derrota, não se pode ignorar os erros acumulados nos últimos anos. Um deles foi a reiterada subordinação da política na definição de sucessores: a ideia de que nomes supostamente técnicos teriam maior aceitação no eleitorado. O resultado mais trágico é o próprio João Azevedo.

Um segundo erro foi a predominância de uma lógica gerencialista na condução de politicas públicas, dentro da qual a opção pela contratação de Organizações Sociais (OS’s) é uma das faces e se tornou o flanco por meio do qual veio o ataque da Calvário. Esse mesmo gerencialismo também foi compartilhado por governos petistas em diversos níveis, inclusive o federal, vide as experiências das Fundações Estatais de Direito Privado e outras. E ele também está na raiz das dificuldades de Ricardo Coutinho na relação com o movimento sindical, elemento determinante para sua rejeição dentro do PT, por exemplo. Reconstruir pontes passará pela capacidade de dialogar com esses setores.

Outro erro foi a incapacidade de apostar em processos coletivos, especialmente na organização popular, superando uma lógica de subordinação a cargos e mandatos e consolidando uma base de sustentação mais sólida ideologicamente e com maior potencial de gerar lideranças. É verdade que tal erro não é exclusivo do PSB, mas o contraste entre a velocidade com que o partido foi fulminado na Paraíba em dois anos e a resiliência que o PT demonstra nacionalmente nos últimos cinco evidencia tal insuficiência de forma límpida.

Do ponto de vista de longo prazo, o que se coloca para o campo democrático-popular é a necessidade de retomar os vínculos com as classes trabalhadoras, reconstruindo um bloco histórico por elas hegemonizado e que arraste os setores médios democráticos e progressistas.

Esse desafio está posto nacionalmente, mas, em João Pessoa, ele se magnificou com a reabilitação das oligarquias em consórcio com o bolsonarismo. Serão anos duros os que virão. Sem retomar a construção da unidade, para a qual a Frente Brasil Popular segue sendo decisiva, levaremos muito mais tempo para construir as bases de um projeto popular para Brasil.

Agora é hora de recolher os cacos e calçarmos as chinelas da humildade para não ferirmos nossos pés e trilharmos o caminho da resistência que desembocará na retomada das lutas e num novo ciclo de esquerda. Adelante!

 

Henrique Medeiros é médico e doutorando em Saúde Pública

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato

Fonte: BdF Paraíba

Edição: Cida Alves