Saara Ocidental

Direito de lutar: o relato de um refugiado saauári pronto para a guerra com Marrocos

Ahmed Jouli explica a frustração de milhares de compatriotas: "Lutamos pacificamente por 30 anos e fomos ignorados"

Brasil de Fato | Florianópolis (SC) |

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Registro feito no dia 20 de novembro mostra as ruas do acampamento vazias - Ahmed Jouli / Arquivo pessoal

Ahmed Jouli tem 29 anos e vive desde criança em campos de refugiados saauáris no Norte da África. Os pais dele saíram do Saara Ocidental em 1975, quando o território se tornou independente da Espanha, mas passou a ser ocupado por militares de países vizinhos, Marrocos e Mauritânia.

Após 16 anos de guerra, com quase 20 mil mortos, a Frente Polisário – movimento que luta pela autodeterminação dos saauáris – e o Reino de Marrocos assinaram um acordo de cessar-fogo, em setembro de 1991. O acordo foi rompido há uma semana, com um ataque marroquino à região conhecida como “fenda de Guerguerat”.

Imediatamente, a Frente Polisário declarou “estado de guerra” e retornou à luta armada. De lá para cá, a vida dos refugiados virou de cabeça para baixo.

A família de Ahmed vive nos campos de Smara, sudoeste da Argélia. “Estamos em estado de alerta, dia e noite, desde 13 de novembro, quando a guerra recomeçou”, conta.

“As lojas e os mercados estão vazios, não se vê ninguém na rua. Quase 90% dos homens deixaram o campo e estão em treinamento militar para se juntar ao front. O acampamento, agora, tem basicamente mulheres, que assumem os trabalhos domésticos, a educação e a gestão, como na década de 1980”, relata o refugiado.


Campo de refugiados em Smara, onde vive Ahmed Jouli: "Quase 90% dos homens já estão em treinamento militar para se juntar ao front" / Saharawi Voice

Por que luta armada

Ahmed é diretor regional do Ministério de Esporte e Juventude do Saara Ocidental. Até 13 de novembro, supervisionava projetos junto ao Conselho Dinamarquês para os Refugiados, ONG que atende jovens desempregados nos acampamentos.

Mesmo os saauáris que trabalham em setores administrativos, como ele, estão em estado de emergência. “Eles nos disseram para aguardar o chamado da Frente Polisário, se o nosso serviço for necessário”, explica, acrescentando que está disposto a ir ao front. “Já sofremos demais e temos o direito de lutar para ter nosso país [República Árabe Saarauí Democrática] e a nossa terra de volta. Não queremos mais viver acampados no meio do deserto”.

Segundo o refugiado, cerca de 70% dos moradores do acampamento são jovens como ele, que acumulam “raiva e frustração pelas mentiras contadas sobre a realização do referendo”. Uma das condições para o cessar-fogo, em 1991, era a convocação de uma consulta pública no ano seguinte sobre a autodeterminação do povo saauarí. O processo, que deveria ser mediado e garantido pela Organização das Nações Unidas (ONU), nunca aconteceu.

“A atmosfera nos campos de refugiados saauáris é uma mistura de entusiasmo e abandono. Sentimos que estamos abandonados, negligenciados pela comunidade internacional, que ignora nossas demandas há muitos anos. Não há pressões efetivas sobre o Marrocos”, lamenta.

Ahmed também critica o interesse repentino da mídia internacional sobre o tema: “Estamos lutando pacificamente por três décadas, mas parece que a mídia precisa de sangue para dar atenção às nossas demandas”.


Cidadã levanta bandeira da República Árabe Saarauí Democrática em área ocupada por marroquinos / FAROUK BATICHE / AFP

O pai morreu quando Ahmed tinha 10 anos. Com ele no acampamento, estão irmãos, primos, tios e a mãe. Meios-irmãos, pelo lado paterno, vivem na Espanha e na França. “Depois do que aconteceu no dia 13, eles querem voltar aos campos e se juntar ao Exército”, ressalta. “Queremos desfrutar da vida, dos recursos naturais da nossa terra sem a ocupação marroquina. Esse sentimento, eu compartilho com milhares de saauáris refugiados, em territórios ocupados pelos marroquinos, ou em diáspora”.

Com 600 mil habitantes, o Saara Ocidental possui petróleo e gás. O território também é rico em fosfato e em áreas de pesca, que vêm sendo explorados por espanhóis e marroquinos.

Cerca de 40 saauáris são presos políticos, e há relatos de tortura e violações ao Direito Internacional mesmo durante o período de cessar-fogo.

Na última semana, foram registradas baixas tanto do lado marroquino quanto da Frente Polisário. Segundo o Coletivo de Defensores dos Direitos Humanos Saarauís (Codesa), não é possível precisar o número de óbitos porque ativistas e jornalistas estrangeiros são impedidos de chegar às zonas de conflito – forças marroquinas ocupam o aeroporto e as vias de acesso.

Países africanos como Namíbia, Zimbábue e Argélia condenaram a agressão marroquina. Por meio de nota, o Brasil apenas lamentou o fim do cessar-fogo, sem citar o ataque à região de Guerguerat.

Edição: Rogério Jordão