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Mau exemplo na pandemia, Bolsonaro força volta às aulas sem planejamento

Falta de coordenação nacional e baixos investimentos são principais desafios, afirmam especialistas

Brasilia (DF) |
Madureira, reitor da UFG: "Não dá para você retomar de forma presencial todas as atividades quando os sinais da pandemia ainda são extremamente graves e preocupantes" - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Na última semana, o Ministério da Educação (MEC) deu uma "carteirada" para tentar forçar a volta de todas as atividades presenciais em universidades e faculdades brasileiras já em janeiro de 2021. Por meio de uma portaria, sem diálogo prévio com reitores, o ministro Milton Ribeiro determinou não apenas o retorno a partir do dia 4 do mês que vem, mas revogou a permissão para que atividades online contem como dias letivos.

Com a forte reação negativa, o ministro se reuniu com representantes de universidades públicas e privadas na sexta-feira (4) para debater formas de fazer valer a nova portaria. Após a pressão, o MEC voltou atrás e, na segunda-feira (7), determinou que as instituições de ensino superior deverão retomar as aulas presenciais a partir de 1º de março do próximo ano, desde que sigam os protocolos de prevenção à covid-19.

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De acordo com o reitor da Universidade Federal de Goiás (UFG), Edward Madureira, que é o presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino (Andifes), que reúne os reitores das federais, as universidades nunca deixaram de funcionar durante a pandemia.

"As universidades federais estão em pleno funcionamento, com atividades remotas, com programações diversas, com semestres letivos definidos. Muitas já se organizam para que parte das atividades mais complexas, que não podem ser remotas, possam ser retomadas de forma presencial seguindo protocolos de segurança sanitária. Agora, o que não dá é para você retomar de forma presencial todas as atividades quando os sinais da pandemia ainda são extremamente graves e preocupantes. Precisamos ver um número decrescente de casos de covid-19 e também ter a garantia de condições materiais para sustentar os protocolos de segurança”, afirmou ao Brasil de Fato. Segundo ele, a autonomia das instituições de ensino deve ser respeitada nesse processo de retomada.

Em nota após a reunião, o MEC recuou na posição anterior e disse que respeitará a decisão de cada instituição em definir um cronograma de retorno presencial dos mais de 8,6 milhões de estudantes matriculados no ensino superior no Brasil. "A maioria dos representantes das entidades se mostraram favoráveis à necessidade do retorno das aulas presenciais na maior brevidade possível, obviamente respeitando-se os protocolos de segurança, a autonomia já prevista às instituições de ensino superior e as particularidades de caráter local e regional".

Além de um planejamento para a reabertura de atividades presenciais, as entidades que participaram da reunião com o ministro, incluindo dirigentes de faculdades privadas, pediram a homologação do parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), aprovado em outubro, que permite a continuidade do ensino remoto até dezembro de 2021, caso seja de interesse das redes de educação, tanto públicas quanto privadas. Para entrar em vigor, o texto do CNE precisa ser validado pelo MEC, que prometeu se manifestar oficialmente sobre o assunto nos próximos dias.

Como o MEC não tem governança sobre o ensino público na educação básica (alfabetização e ensinos fundamental e médio), que está a cargo de estados e municípios, a pasta não pode determinar o retorno imediato das aulas presenciais nessas redes. A volta às aulas presenciais tem sido um dos grandes desafios de gestão dessa pandemia. Sem uma coordenação nacional das decisões articuladas pelo governo federal, os governos estaduais e municipais podem ceder à pressão por uma abertura precipitada, na avaliação de alguns especialistas.

"Por conta do negacionismo em relação à pandemia, estamos fazendo um processo de volta às atividades presenciais muito precipitado e que pressiona para a reabertura precoce das escolas. Assim, diversas redes - inclusive e sobretudo as privadas - têm sido pressionadas a pensar com urgência e com poucos elementos críticos aprofundados um retorno às aulas, que depende também de uma série de condições de qualidade e de financiamento que não temos na grande maioria das escolas do país. Uma volta precoce e sem financiamento adequado para condições sanitárias e de qualidade será um risco muito grave em termos de contaminação e de mortes", afirma Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e integrante da coordenação da Rede Lusófona pelo Direito à Educação e da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação.

Levantamento da Federação Nacional de Escolas Particulares (Fenep), atualizado no último dia 1º de dezembro, mostra que, em 23 estados, a retomada das aulas presenciais está autorizada ou parcialmente autorizada. São os casos de Acre, Amazonas, Ceará, Goiás, Distrito Federal, Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro , Rio Grande do Norte, Rondônia, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe, São Paulo e Tocantins.

O levantamento da Finep foi feito com base apenas na situação das capitais de cada estado. Em quatro dessas capitais, há proposta de data ou abertura parcial: Alagoas, Paraíba, Roraima e Paraná. Já nas capitais de Amapá e Bahia, ainda não há previsão oficializada. Em outra pesquisa, divulgada em outubro, a Confederação Nacional dos Municípios (CNM) informou que 3,2 mil prefeituras consultadas disseram não ser possível retomar as aulas presenciais em 2020. Em pelo menos 3.742 municípios do país nem sequer há data definida para retorno presencial na rede municipal de ensino. Participaram da pesquisa 3.988 gestores locais, o equivalente a 71,6% do total de 5.570 municípios de todo o país.

Caminhos para o retorno

Em setembro, um relatório publicado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne nações ricas da Europa, além de Estados Unidos e Japão, apontava que, entre 46 países avaliados, somente oito estavam com aulas suspensas por causa da pandemia, incluindo o Brasil. Na avaliação que fazia das políticas adotadas, o relatório ressaltava a necessidade de coordenação entre autoridades educacionais e de saúde em diferentes níveis governamentais, aspecto que não tem sido a realidade brasileira na condução da crise. Ao Brasil de Fato, o professor Eduardo Caron, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense (UFF), vê a necessidade de retomada das aulas como fundamental, mas como base em um planejamento articulado.  

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"Uma visão responsável requer colocar o sistema de saúde a favor da proteção da saúde e, através dessa ação ativa, voltada para a redução do contágio, voltada para a redução da transmissão comunitária, para o rastreamento, a testagem, garantir melhores condições para que o espaço escola seja frequentado", afirma. Para ele, a escola representa um espaço essencial de proteção social e precisa ser tratado como prioridade para que possa ter condições de voltar a funcionar. "No Brasil, é preciso entender que 40 milhões de alunos na educação básica frequentam a escola pública municipal e estadual. Desse total, 33 milhões são alunos de famílias com renda de até um salário mínimo. Então, a escola, tradicionalmente, veio se tornando cada vez mais um espaço de proteção social, de segurança alimentar, espaço de educação como necessidade básica, de proteção social às vulnerabilidades sociais", aponta.

Para Andressa Pellanda, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o Brasil destoa da maioria desses países que retomaram as aulas justamente por causa da incompetência na gestão da crise. "Os países que melhor responderam aos desafios da pandemia foram aqueles que desprenderam financiamento adequado, que implementaram políticas com gestão democrática e cooperação e que, portanto, têm sistemas públicos fortes. O Brasil não só é um mau exemplo no primeiro ponto, por conta das políticas de austeridade ainda vigentes e da falta de investimentos adequados, como também do segundo ponto, já que as decisões foram sendo tomadas de forma verticalizada e descoladas da realidade do país", argumenta.

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Para Pellanda, a pergunta não é quando abrir as escolas, mas como. "A realidade brasileira evidencia que a oferta de ensino ainda se dá em condições insuficientes ou precárias nas escolas públicas. Quase dois milhões de alunos brasileiros estudam em colégios públicos sem acesso à água potável. Além disso, 800 mil estão matriculados em escolas sem esgoto. 148 mil em unidades sem energia e outros 614 mil não têm banheiro no local onde estudam. Para reabrir, além das políticas educacionais adequadas, é preciso não estarmos com aumento de casos ou em situação de contaminação sustentada. Se seguirem querendo abrir nessa situação, serão responsáveis por muitas mortes, especialmente de pessoas pobres, negras, periféricas, que é quem menos tem acesso a serviços de saúde".

Para ajudar no enfrentamento ao problema, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação chegou a lançar, há alguns meses, uma série de guias específicos de educação e proteção para ajudar na reabertura das atividades escolares.

Edição: Rogério Jordão