Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | Privatização da CEEE-D: propaganda enganosa

Ilegalidades e mobilização forças que defendem a CEEE pública podem levar ao cancelamento do edital de privatização

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Edital de privatização publicado pelo governo Leite prevê leilão da CEEE em fevereiro - Divulgação Grupo CEEE

No momento em que a sociedade gaúcha está alarmada com a persistente pandemia da covid-19, dirigindo toda a sua preocupação para a liberação da vacina, o governador Eduardo Leite (PSDB), seguindo a estratégia de “passar a boiada” e fiel à política de privatização do ministro Guedes, lança o edital de privatização da CEEE Distribuidora, com leilão marcado para o início de fevereiro de 2021.

Novamente se valendo dos fiéis parceiros da imprensa e do legislativo, o governo do estado lança um verdadeiro bombardeio de reportagens, entrevistas e audiências públicas procurando consolidar a versão da inviabilidade da empresa, indicando a alta dívida de ICMS (R$ 3,4 bilhões) e o mau atendimento ao público face à incapacidade de realizar investimentos como a principal motivação, além de acenarem com a iminente perda da concessão. Apresentam os resultados negativos da empresa como se não tivessem qualquer responsabilidade sobre eles!

A pergunta que deve ser feita, que naturalmente os parceiros do governador não fazem, é: Sempre foi assim? Claro que não. Mesmo recebendo um duro golpe na privatização do governo Britto (MDB), quando assumiu praticamente todo o passivo e a receita foi reduzida a um terço, e mantendo o compromisso com os ex-autárquicos, valorosos trabalhadores dos primórdios da companhia, cuja folha de pagamento não tem cobertura tarifária reconhecida, a CEEE, nas gestões que se sucederam até o governo Sartori (MDB), mostrou ser uma empresa viável e importante para o desenvolvimento do estado.

Como era a empresa

Ao final do governo Tarso Genro (PT), que antecedeu Sartori, não se falava em dívida do ICMS, de falta de investimentos, muito menos de perda de concessão.

No início de 2015, a dívida de ICMS era de R$ 107 milhões, com parcelamento negociado. Os investimentos no período 2011 a 2014 beiraram os R$ 800 milhões. Foram dezenas de alimentadores e subestações construídos em toda a área de concessão. Naquela época, os eventuais atrasos em obras não se davam por falta de recursos, mas pela falta de capacidade das empreiteiras privadas para suprir o ritmo de obras da CEEE. Não havia eletricistas, técnicos e engenheiros eletricistas desempregados. Era o tão sonhado pleno emprego no setor induzido pela CEEE. Tal situação despertou o interesse de empreiteiras de fora do estado.

É bom lembrar que em 2014 houve a Copa do Mundo de futebol com jogos em Porto Alegre. E tudo aconteceu na mais absoluta normalidade do ponto de vista de suprimento de energia elétrica. Não foi sorte ou acaso. Várias obras foram construídas, destacando-se a subestação perto do Beira-Rio com tecnologia avançada, cumprindo outro papel da empresa pública que é fomentar o desenvolvimento tecnológico.

Como resultado de todo o investimento feito, da capacidade de seus trabalhadores e de sua gestão que viabilizou recursos financeiros, em acordos com o governo federal e financiamentos externos, em 2015 a CEEE ocupou a 4ª posição no ranking das melhores distribuidoras. A melhor do estado. Portanto, não havia risco de perder a concessão! Ainda em 2017 a CEEE-D disputava a liderança nacional de melhor distribuidora no quesito satisfação do cliente com mais três concessionárias. Provavelmente isto obrigou o governador Leite a manobras legislativas para acabar com a necessidade de plebiscito para a venda da CEEE-D.

Como transformaram a empresa

Nos dois primeiros anos do governo Sartori, a gestão técnica da CEEE ainda se caracterizou por buscar melhorias nos indicadores da empresa, dando continuidade às obras contratadas na gestão passada.

Nos dois anos finais do governo Sartori e no atual governo Leite, a decisão ideológica de privatizar substituiu a árdua tarefa de administrar uma empresa da importância e da história da CEEE. Ao invés de buscarem financiamentos ou mesmo simples transações dentro do próprio grupo, já que a CEEE-GT era lucrativa, optaram deliberadamente por se “capitalizar” com o dinheiro mais caro à disposição, que é o ICMS, cuja multa por atraso é de 20%. Não estavam preocupados com os resultados financeiros desta operação mas sim colocar os agentes da sociedade contra a empresa, desqualificando-a junto à opinião pública na medida em que ficou caracterizada como a responsável por não repassar recursos essenciais para outras áreas.

Também não se preocuparam com as receitas da empresa. A receita líquida anual de 2019 (R$3,38 bilhões) é menor do que a de 2015 (R$3,56 bilhões)! Os créditos de liquidação duvidosa que em 2016 eram de R$ 238 milhões saltaram para incríveis R$ 824 milhões em junho de 2020. O que esperar dos grandes consumidores de energia sabendo que a CEEE não fiscaliza nem faz esforço para cobrar devedores?

Hoje parte significativa da sociedade, manipulada por omissões e falta de informação, aceita privatizar a CEEE pelo simples fato de que o novo dono voltará a pagar o ICMS. Ou seja, voltar a situação de 5 anos atrás quando a empresa recolhia o tributo. Para isto, o estado e, consequentemente a sociedade, vai perdoar 2,8 bilhões de reais de ICMS, assumir a folha dos ex-autárquicos e, indiretamente, assumir o restante do passivo da empresa, ao aceitar transferir todo o patrimônio da empresa por 50 mil reais. Neste cenário, a empresa poderia continuar sendo pública, com gestores mais competentes do que os atuais.

Os erros do edital

A administração da CEEE também cometeu erros graves no edital de privatização que certamente serão explorados de forma adequada e no momento oportuno. O primeiro deles se relaciona à forma de capitalização da CEEE-D através do perdão do ICMS. Tanto perdão de ICMS como capitalização de empresa estatal necessitam de autorização legislativa. A exigência de lei para perdão de ICMS está no Código Tributário Nacional.

O segundo erro diz respeito à ausência de referência aos contratos previdenciários com a Fundação CEEE. A lei 10.607∕95, citada como base para o edital, estabelece que deve haver total transparência nos procedimentos, expondo as condições do processo e da situação econômica e financeira da empresa. Em relação à questão previdenciária, no art 14º. inciso IX está explícito que deve ser assegurado o direito dos empregados participantes do sistema de previdência privada da instituição a ser privatizada. Por outro lado, a lei 12.593∕06, também citada no edital, estabelece no art 6º que as empresas do grupo CEEE devem manter os atuais planos previdenciários CeeePrev e Único, independente da troca de controle acionário, fato recentemente assegurado pelo poder judiciário.

Além das duas leis, existem contratos firmados entre CEEE e Fundação CEEE que estabelecem garantias para as dívidas existentes, das quais destacam-se a solidariedade entre as empresas CEEE-D (a ser privatizada neste edital) e a CEEE-GT (prevista para futura privatização) para honrar os compromissos assumidos, a autorização para a Fundação quitar débitos pendentes diretamente nas contas bancárias das empresas do Grupo CEEE, e ainda a obrigação da empresa privatizada quitar a dívida de cerca de R$ 800 milhões à vista no momento da privatização. No edital não há qualquer referência a esta intrincada relação entre a CEEE e a Fundação CEEE, contrariando os preceitos de transparência da lei 10.607∕95.

Outro ponto obscuro do edital se refere ao tratamento dado à ação judicial do CRC2, transferindo a responsabilidade pela defesa ao comprador privado que no caso de êxito deverá repassar o objeto da vitória ao estado. Embora pareça uma forma de defender os interesses do estado, esta abordagem prejudica e praticamente inviabiliza a vitória. Primeiro porque o comprador não terá qualquer interesse na defesa. Segundo porque os recursos do CRC (Conta de Resultados a Compensar) só podem ser usados em investimentos no setor elétrico e compensações de dívidas intrassetoriais. Como o estado receberá os recursos se ele deixará de ser agente do sistema elétrico nacional? O assunto não pode ser tratado como secundário porque envolve um montante de mais de R$ 8 bilhões, valor superior ao próprio objeto do leilão.

Existem ainda outras ilegalidades como o não oferecimento de um percentual de ações da companhia aos empregados, o que é exigido também pela lei 10.607∕95, no art 14º, inciso X.

Diante disto, e da mobilização das forças que defendem a manutenção da CEEE pública, eficiente e a serviço da sociedade como já ocorreu no passado, é muito provável que o leilão marcado para o início de fevereiro não aconteça pelo cancelamento do edital de privatização.

* Sandro Rocha Peres é engenheiro eletricista aposentado da CEEE e ex-conselheiro deliberativo da Fundação CEEE


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Edição: Marcelo Ferreira