Resistência

O Cerrado contra-ataca: publicações reforçam resistência dos povos

Em contrapartida aos impactos do agronegócio, livro e revista apresentam saberes e práticas agroecológicas

Brasil de Fato | Imperatriz (MA) |

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As mulheres organizadas resistem no quilombo Cocalinho, uma das áreas ameaçadas pelo avanço das plantações de eucalipto no Maranhão - Leandro Santos

“Nós, seres humanos que vivemos nas matas, nós somos a biodiversidade”, afirma dona Socorro Teixeira, quebradeira de coco babaçu da região do Bico do Papagaio, no extremo norte do estado do Tocantins. A área é uma transição entre a fauna e a flora do Cerrado e da Amazônia.

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Inspiradas em relatos como o da dona Socorro e nos exemplos de resistência dos povos ameaçados pelo avanço do agronegócio no Cerrado brasileiro, duas iniciativas lançadas em dezembro dão ânimo e esperança diante dos desafios cotidianos. 

O livro Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade traz relatos de moradores locais e faz parte da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado. Já a Revista Cerrados traz uma edição sobre os impactos à biodiversidade do bioma devido à expansão do agronegócio. 

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Relatos e investigações

Construído por diversas mãos em plena pandemia da covid-19, a obra Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade traz relatos e análises dos modos de vida e resistência dos povos que promovem a conservação da biodiversidade da região: indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco babaçu, raizeiras, geraizeiros, apanhadoras de flores sempre-vivas, benzedeiras, retireiros do Araguaia, pescadores artesanais, assentados de reforma agrária e outros.

Diana Aguiar, assessora política da campanha que organizou a obra, explica que os saberes dos povos da região são um imenso patrimônio histórico e sociocultural, que fazem parte de processos de aprendizagem e cuidado com a natureza. No entanto, atualmente, esse riqueza cultural e ambiental está sendo ameaçada pelo agronegócio, que a está substituindo por vastas áreas de monocultura.  

“Em poucas décadas, o agronegócio está substituindo essa riqueza de saberes, que tem uma longuíssima trajetória de desenvolvimento por tecnologias que uniformizam as sementes e as paisagens. Tecnologias que são controladas por corporações transnacionais, que contaminam as águas e os solos. Basicamente tecnologias que devastam”, explica.

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O livro também faz parte das iniciativas da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, formada por mais de 50 organizações, pastorais e movimentos populares, com atuação junto a comunidades tradicionais de mais de nove estados brasileiros.

Para a campanha, a preservação da biodiversidade também está associada à manutenção e à ampliação dos saberes dos povos que cuidam e convivem com o Cerrado há tantos anos, como explica Aguiar, que também é pesquisadora de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). 

“Muitas vezes, as pessoas esquecem disso e acham que defender o Cerrado é defender os bichos, as matas, o que também é importante, mas esquecem de defender os povos do Cerrado. Se ainda existe Cerrado em pé, é porque esses povos estão com seus pés no chão do Cerrado, lutando para permanecer em seus territórios de vida mesmo diante da violência dos grileiros que desmatam e devastam”.


O livro é parte da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e está disponível gratuitamente / Reprodução

Exploração do agronegócio

A Revista Cerrados, em sua segunda edição, também alerta para os diversos impactos à biodiversidade do Cerrado e aos territórios onde vivem seus povos, especialmente aqueles causados pela expansão do agronegócio e o intenso uso de agrotóxicos nas lavouras de soja, milho, cana-de -açúcar, algodão, entre outras monoculturas.

O bioma que dá nome à publicação, que pode ser adquirida gratuitamente, o Cerrado é considerado o segundo maior do Brasil em extensão e a mais rica savana do mundo em biodiversidade, mas repleto de particularidades na fauna, na flora, no clima e na vegetação.

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Isolete Wichinieski, da coordenação executiva da Comissão Pastoral da Terra (CPT), explica que o Cerrado “tem diferenciações, assim como a sua ocupação, e isso visualiza esse território como o berço das águas. Então, essa revista quer trazer essa realidade e, também, trazer a realidade do impacto que essas comunidades sofrem”.

Publicada por iniciativa da CPT, a publicação apresenta dados alarmantes sobre a ofensiva na flexibilização da legislação referente ao uso de agrotóxicos provocada pelo governo Bolsonaro, além de apontar casos de infecção de pessoas nos estados que compõem a chamada última fronteira agrícola do Matopiba, que abarca o Maranhão, o Tocantins, o Piauí e a Bahia.

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Por outro lado, a publicação abre espaço para as informações a respeito dos saberes e práticas agroecológicas vindas de territórios dos povos e comunidades tradicionais, como resistências a esse projeto de morte.

“Ela traz toda essa reflexão da resistência das comunidades, trazendo a experiência dos modos de vida a partir da agroecologia, o que se propõe para esse ambiente, para preservação, conservação e defesa desse bioma. Traz também a experiência das mulheres, que são as defensoras da vida e guardiãs da biodiversidade e faz essa relação com as comunidades e os povos do Cerrado”, explica Wichinieski.


A Revista Cerrados trata especialmente dos impactos dos agrotóxicos nos territórios e modos de vida dos povos do Cerrado / Reprodução

Edição: Vivian Fernandes