Coluna

A produção de dados como parte do combate ao racismo no sistema de justiça

Imagem de perfil do Colunistaesd
Assim, a coleta, sistematização e atualização permanentes de dados são fundamentais para o combate ininterrupto à falsa impressão de inexistência de práticas institucionais discriminatórias - Nelson Jr./STF
Reconhecer a existência do racismo é passo imprescindível para combatê-lo

Por Thiago da Silva Santana*
 

Reconhecer a existência do racismo é passo imprescindível para combatê-lo. Nesse sentido, não produzir dados e análises sobre a realidade desigual serve à negação da importância dos negros para a formação social brasileira e à manutenção discursiva da fictícia democracia racial. No âmbito do sistema de justiça, os dados existentes e a falta deles revelam, a um só tempo, a manifestação do racismo estrutural e os desafios para transpô-lo.

No plano internacional, o reconhecimento do racismo a partir de dados empíricos teve impulso considerável com a Conferência de Durban (África do Sul), ocorrida em 2001. A profusão de debates e a recomendação para que os Estados produzissem dados estatísticos confiáveis resultaram, no Brasil, no esforço para que os órgãos oficiais, a exemplo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), despendessem esforços para coleta de dados baseados na autodeclaração étnico-racial.

No âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em 2006, houve a responsabilização do Brasil no caso Simone André Diniz. Foram reveladas a ocultação dos crimes de racismo e injúria racial pelo sistema de justiça e a insuficiência de dados estatísticos sobre investigações e punições. O Anuário Brasileiro da Segurança Pública revela a atual manutenção desses desafios: subnotificação dos casos, omissão estatal na responsabilização dos acusados e insuficiência de dados dos órgãos estaduais.

Para promover o reconhecimento da desigualdade a partir de dados, há diversas iniciativas do sistema de justiça a serem destacadas. Um exemplo é a decisão do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 2020, tornando obrigatória a autodeclaração de cor/raça para inscrição profissional. Isso significa progresso institucional, considerando que a Ordem – assim como o Ministério Público – não dispõe de dados, em âmbito nacional, sobre o percentual de negros em seus quadros.

Um passo adiante, a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP), por meio do IV Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, de 2015, dispôs que, nas Defensorias Estaduais, há 76,4% de brancos e 21,4% de negros. Na Defensoria da União, 73,7% de brancos e 23,5% de negros.

Entretanto, para tal pesquisa, muitas instituições e profissionais não enviaram as informações, nem houve atualização. Para enfrentar a problemática, em 2020, as Defensorias Públicas dos Estados da Bahia e de Goiás promoveram o censo étnico-racial de seus membros e servidores, inclusive para possibilitar a avaliação das ações afirmativas que implementam.

Ainda mais à frente, o Censo do Poder Judiciário, publicado em 2014 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), expôs que, dentre os magistrados, 84,2% eram brancos e 15,6% negros. Dentre os servidores, 70,9% brancos e 29,1% negros. No Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros, de 2018, constatou-se que havia 80% de brancos e 18% de negros na magistratura.

Esse esforço de atualização dos dados permitiu ao CNJ avaliar as limitações das cotas raciais no âmbito do Poder Judiciário, instituídas desde 2015. É relevante a produção, em 2020, do Relatório Igualdade Racial, com diversas sugestões de ações afirmativas, direcionadas ao Judiciário e inspiradoras para as demais instituições.

Todas essas iniciativas podem ser consideradas como avanços se for compreendido o papel das instituições ante o racismo estrutural, como disposto por Silvio Almeida: “[...] se o racismo é inerente à ordem social, a única forma de uma instituição combatê-lo é por meio da implementação de práticas antirracistas efetivas”.

Assim, a coleta, sistematização e atualização permanentes de dados – que exigem a participação individual dos profissionais – são fundamentais para o combate ininterrupto à falsa impressão de inexistência de práticas institucionais discriminatórias. Mais que isso: podem ser contributos importantes à mudança estrutural, na medida em que oferecem subsídios para que o sistema de justiça promova a proteção suficiente aos negros com vistas à efetivação da igualdade, baseando-se em dados mais próximos da realidade.

*Thiago da Silva Santana é mestre em Direitos Humanos e defensor público do Estado do Maranhão

Edição: Rodrigo Chagas