República Madalena

Tentativa de repressão militar levou polo de resistência a bairro paulistano

Documentário narra o fechamento do Conjunto Habitacional da USP e o êxodo estudantil que transformou a Vila Madalena

Ouça o áudio:

Cena do documentário República Madalena (2019), do diretor Fernando Belo - Divulgação

E que ano foi 1968 para o Brasil. Foi o ano em que os militares, no poder desde 1964, instituíram o Ato Constitucional n° 05, mais conhecido como AI-5, medida responsável por anular as liberdades constitucionais individuais e decretar o fechamento das portas do Congresso Nacional.

Por outro lado, o acirramento da repressão também foi o estopim de grandes atos de resistência popular, como a passeata dos 100 mil em junho, no Rio de Janeiro.

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Naquele ano, Mouzar Benedito, até então estudante de Geografia da Universidade de São Paulo e morador do Conjunto Habitacional da USP, o CRUSP, sabia que o AI 5 representaria mais perseguição aos estudantes. 

“E aí veio o AI-5 que era uma coisa muito mais repressiva do que a gente esperava. Dava permissão para invadir, prender, arrebentar. Podia fazer o que quisesse, não tinha respeito à lei. Não tinha habeas corpus. Tinha o direito de invadir residências e tudo mais. Então nós já sabíamos que ia haver uma invasão no CRUSP", conta. 

A invasão do governo militar no CRUSP é o enredo do documentário República Madalena, no qual Mouzar é um dos protagonistas. 

Mouzar Benedito é geógrafo, escritor e também colunista do Brasil de Fato.

Ele e outros ex-estudantes relatam momentos de tensão após o decreto do AI-5, que aterrorizou alguns alunos ao ponto de enterrarem seus livros por medo das obras serem consideradas conteúdo subversivo por parte dos militares. 

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Após a invasão das tropas no conjunto habitacional estudantil, todos estudantes, independentemente de vida política, foram presos e mantidos com fome durante dias. Depois da prisão, a pergunta mais recorrente era: onde morar?  

“Tinha mais ou menos 1.200 presos, e a gente ia saindo e não tinha onde morar. Simplesmente não tinha onde morar, tinha que procurar algum lugar. E quando eu tive autorização para pegar minhas roupas, porque estava usando as do meu irmão, vi que o Exército e a polícia tinham saqueado tudo, recorda Mouzar. 


Cartaz de lançamento do documentário República Madalena / Reprodução

Desabrigados e sem nenhum apoio por parte da Universidade, os estudantes passaram a buscar uma nova alternativa de lugar para morar.

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Foi então que, dos alunos desabrigados do Crusp, um em cada três alunos se mudou para a Vila Madalena, transformando drasticamente a paisagem do local, como destaca o diretor do filme, Fernando Belo: 

“Ninguém falava muito da Vila Madalena. Haviam muitos operários morando lá. Um monte de casinhas. Não era o bairro que a gente conhece hoje. E foi com essa mudança dos alunos para lá que o bairro teve essa efervescência cultural, que ao longo das décadas transformou no centro cultural e da vida noturna de São Paulo que a gente conhece hoje".

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A presença dos universitários que buscavam por uma vida mais barata na região, alterou drasticamente a paisagem do bairro. Quartos no fundo das casas e repúblicas estudantis passaram a moldar as ruas. 

A Vila Madalena cresceu e se tornou um polo de cultura e resistência ao governo militar.

Com o passar dos anos o bairro se tornou ativo na vida noturna da cidade e alvo de especulação imobiliária. Com o passar dos anos se tornou cada vez mais caro viver na Vila e as pessoas de renda mais baixa foram obrigadas a abandonar o bairro.

“Eu acho que recentemente a Vila (Madalena) passou por um processo de gentrificação que ironicamente só se tornou possível porque foi justamente o pessoal de uma ideologia mais marginal, um estilo de vida mais marginal, que se interessou pelo bairro e tornou aquele bairro mais interessante, cultural", destaca Belo. 

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Mais do que contar sobre a história de um bairro paulistano, para o diretor do filme, República Madalena fala também da conjuntura sócio-política atual do Brasil.

“Para muitas pessoas esse passado parece um passado distante, mas ele não é. A gente tem ainda muitas pessoas na vida política que fizeram parte da época da ditadura, avalia. 

Ainda de acordo com o cineasta: "a gente tem ainda uma ideologia que é presente, é ativa, que motivou a época da ditadura. Então a gente achou importante usar esse documentário para mostrar que esse passado não é tão distante", acrescenta. 

*Adrielly Marcelino teve supervisão de Douglas Matos

 

Edição: Douglas Matos