Rio Grande do Sul

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Posições foram demarcadas na posse da nova Câmara de Vereadores de Porto Alegre

Bancada negra já assume fazendo história e não está sozinha na decisão de protestar contra frase racista no hino gaúcho

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O vereador Matheus Gomes justificou o protesto: "Não temos obrigação nenhuma de cantar um verso que diz: ‘povo que não tem virtude acaba por ser escravo’” - Foto: Leonardo Contursi/CMPA

Pela primeira vez na história do Legislativo porto-alegrense foram eleitas quatro vereadoras negras e um vereador negro. Sendo a vereadora Karen Santos a mais votada da Casa. No dia 1° de janeiro de 2021, essa bancada inédita pisou o chão majoritariamente branco e masculino com o pé esquerdo e demarcando posição.

Durante a execução do Hino Rio-Grandense, a bancada negra permaneceu sentada. Não menos simbólico, quem foi criticar a atitude foi a vereadora Comandante Nádia, fardada e sem máscara. Disse que considerava um desrespeito às normas da Câmara. E ainda buscou desqualificar a ação chamando seus autores de jovens e novatos na Casa.

O vereador Matheus Gomes, jovem e novato, justificou o protesto. “Nós, como bancada negra, pela primeira vez na história da Câmara de Vereadores, talvez a maioria daqui que já exerceram outros mandatos não estejam acostumados com a nossa presença, não temos obrigação nenhuma de cantar um verso que diz: ‘povo que não tem virtude acaba por ser escravo’”, disse.

Dos 36 vereadores, 31 são brancos. A mesa diretora é toda branca. Eleita no tapetão e sem a presença de nenhuma representação da bancada de oposição, que tem os vereadores mais votados e soma cerca de 30% do total de votos. Assim como, os 22 novos secretários municipais de Porto Alegre são brancos. E apenas duas mulheres. 


Dos 36 vereadores, 31 são brancos. A mesa diretora é toda branca. Eleita no tapetão e sem a presença de nenhuma representação da bancada de oposição / Leonardo Contursi/CMPA

Matheus disse ainda ser historiador, “faço mestrado na UFRGS, a nossa instituição, a Universidade Federal, é uma das mais importantes do nosso estado, fruto da luta de muitos de nós aqui, já reconhece a não obrigatoriedade das pessoas terem que tocar o hino devido a esse conteúdo racista dele em solenidades oficiais e acho que seria muito importante a Câmara de Porto Alegre também começar a se perguntar sobre esse tema”.

Ao final, o vereador completou: “Nós não temos obrigação disso e nós precisamos fazer um movimento na sociedade pra reverter a existência de uma frase de cunho racista no Hino do Rio Grande do Sul”.

Matheus e a bancada negra não estão sós na sua afirmação de que não precisam aceitar qualquer coisa como sendo normal. Eles chegaram demarcando terreno. Continuam sendo minoria, mas em termos de conteúdo e vivência nas lutas sociais estão anos-luz de distância de falsas comandantes. O primeiro dia da Câmara de Vereadores já mostrou que pedras vão rolar. Não é mais possível convivermos com o racismo, o machismo, a homofobia e a desigualdade social como “instituições”.

Desigualdade não é coisa normal

Neste mesmo dia 1º de janeiro de 2021, a pequena Alice Pamplona da Silva de Souza, de 5 anos, estava no colo da mãe, Franciely Silva, quando foi baleada no pescoço. Era pontualmente meia-noite. A tragédia aconteceu durante uma queima de fogos no Morro do Turano, na região do Rio Comprido, na Zona Norte do Rio, onde mora a família. A menina foi levada para o hospital, mas não resistiu. Sua morte foi constatada à 1h10 do primeiro dia do ano. Só mais uma criança negra a morrer numa favela?


Já nesta foto do enterro da menina de 5 anos, Alice Pamplona da Silva de Souza, a maioria são negros / Divulgação Rio Paz

A chance de um menino negro morrer no Brasil é muito mais alta do que um menino branco. Isso não é opinião. São dados do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em outubro do ano passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O Brasil teve ao menos 4.928 crianças e adolescentes mortos de forma violenta em 2019. O número representa 10% do total de mortes violentas do ano passado (47.773). Os negros representam 75% das crianças e adolescentes de 0 a 19 anos vítimas de mortes violentas intencionais no Brasil. Em todas as faixas etárias, o número de vítimas negras é maior que o número de vítimas brancas. Não existe racismo no Brasil?

O Hino Rio-Grandense deve ser alterado

O Hino Rio-Grandense foi criado durante a Revolução Farroupilha, em 1838, depois que os rebeldes farroupilhas venceram no dia 30 de abril o combate do Barro Vermelho.

Segundo o jornalista e escritor Juremir Machado, dados do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) apontam que desde os tempos da Revolução Farroupilha, oficialmente há o registro de três letras para o hino, mas permanece com a melodia original. “Pelas pesquisas do historiador rio-pardense Biagio Tarantino, publicadas no Correio do Povo de 30 de abril de 1975, após a derrota do Exército Imperial no Barro Vermelho no dia 30 de abril de 1838, a banda de música completa de um dos batalhões da infantaria legal foi aprisionada. O mestre Joaquim José de Mendanha, mineiro de nascimento, estava entre os prisioneiros e teria sido convencido a compor uma peça musical em homenagem à vitória das forças farroupilhas.”

Juremir lembra que a melodia criada por Mendanha era apenas musicada, e o capitão Serafim José de Alencastre, integrante das forças farrapas, decidiu escrever uma letra alusiva à tomada de Rio Pardo. Um ano depois houve a composição de uma nova letra, cantada como Hino Nacional, por autor desconhecido. “Após o fim da Revolução Farroupilha, surgiu a terceira letra, escrita por Francisco Pinto da Fontoura, chamado “o Chiquinho da Vovó”, basicamente a mesma adotada como a oficial até hoje. Mas a música ficou no ostracismo durante muito tempo e voltou à tona no período final da Monarquia, em 1887, pelas mãos do rio-pardense José Gabriel Teixeira, que a publicou no jornal A Federação. Em 1892, houve a sua adoção como Hino Oficial do Estado, juntamente com a letra de Francisco Pinto de Fontoura.”

E ele continua, “por ocasião dos preparativos para a Semana do Centenário da Revolução Farroupilha, em 1933, um grupo de intelectuais decidiu escolher uma das versões como a letra oficial do hino do Rio Grande do Sul. Com isso, o Instituto Histórico, com a colaboração da Sociedade Rio-Grandense de Educação, fez a harmonização e a oficialização, com a adoção no ano de 1934. A segunda estrofe, no entanto, foi suprimida no ano de 1966, quando o hino foi oficializado como Hino Farroupilha ou Hino Rio-Grandense, por força da lei 5213 de 5 de janeiro de 1966. Por não conter uma ligação com o Estado, houve a retirada do estrofe “Entre nós reviva Atenas/ Para assombro dos tiranos/ Sejamos gregos na Glória/ E na virtude, romanos”.

Se já foi alterado três vezes, não existe nada que impeça nova alteração em nome de uma reparação histórica que a humanidade deve ao povo negro, escravizado, e que continua sofrendo as consequências de uma Lei Áurea incompleta. As reações contrárias virão. Mas a história não é feita de opiniões, é feita de fatos. E os fatos são inegáveis. Só não vê quem não quer. A mudança está no ar. E estaremos acompanhando e dando voz às novas vozes que ecoam da Câmara de Vereadores de Porto Alegre.

 

 

Chega de Hino Racista! ✊🏾 Ontem, na sessão de posse dos vereadores, a Comandante Nádia criticou a Bancada Negra por não levantar para cantar o hino do RS. Confiram a resposta que eu dei a vereadora 👇🏾 #ChegaDeHinoRacista

Posted by Matheus Gomes on Saturday, January 2, 2021

 

Edição: Ayrton Centeno