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Aborto legal na Argentina: o que significa essa conquista?

Lei foi aprovada em defesa ao direito a decidir e contou com pedido de "autocrítica da Igreja" por senadora ex-Opus Dei

Brasil de Fato | Buenos Aires (Argentina) |

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Militantes comemoram resultado positivo da votação da lei do aborto na madrugada do dia 30 de dezembro em frente ao Congresso Nacional da Argentina. - Ronaldo Schemidt/AFP

O aborto seguro e gratuito na Argentina é lei e já tem número: 27.610. Após décadas de luta feminista pela ampliação de direitos sexuais e reprodutivos, a lei pela despenalização e legalização do aborto e atenção pós-aborto foi aprovada nos últimos dias de 2020.

Agora, a espera é que a determinação seja promulgada e entre em vigor. O presidente Alberto Fernández já adiantou que não fará mudanças no texto, e que a lei deverá entrar em vigência o quanto antes.

O retorno da matéria ao Congresso Nacional foi promessa de campanha do presidente, atendendo à demanda social que se ampliou em 2018, quando a legalização do aborto foi aprovada na Câmara dos Deputados – mas rejeitada pela maioria dos senadores. 

Além do exemplo na região, sendo agora a Argentina o país mais populoso da América Latina a ter o aborto legalizado, pode haver uma considerável demanda de pessoas gestantes que desejam ter acesso ao direito e são dos países vizinhos. No entanto, até que a lei seja promulgada, não há certezas sobre a possibilidade de acesso ao aborto gratuito no sistema de saúde argentino para não residentes.

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Os outros países da região latino-americana que legalizaram o aborto são Uruguai, Guiana, Guiana Francesa, Porto Rico e Cuba. No México, apenas dois estados compreendem o direito de decisão da pessoa gestante: Cidade do México e Oaxaca.

 

O que significa essa conquista?

Com dados alarmantes de uma média de 400 a 600 abortos clandestinos por ano e mais de 3 mil mortes por complicações em procedimentos inseguros, contabilizadas desde o retorno à democracia, a Argentina tem na sanção da lei IVE (Interrupção Voluntária da Gravidez, na sigla em espanhol) uma conquista, considerada pelos movimentos populares e parlamentares uma reparação histórica.

Ao final da sessão que terminou com a aprovação da lei, a senadora peronista Nancy González comemorou o resultado como uma resposta a uma forte demanda social. "Isso é legislar para a população. Quando os grandes temas são estabelecidos pela sociedade, os legisladores precisam estar à altura dessa sociedade que está necessitando", disse.

"A partir de agora, a mulher decidirá sobre seu projeto de vida. Antes, era impossibilitada ou recorria a um aborto clandestino", enfatizou.

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"Com essa lei, alcançamos a dignidade, a liberdade, o reconhecimento do direito ao gozo e de escolher quando queremos maternar", ressalta Ruth Zurbriggen, integrante da rede de atendimento sobre aborto seguro Socorristas en Red.

"Se bem já exercíamos esse poder – porque os abortos existem com ou sem lei –, o que muda agora é que o Estado reconhece que a criminalização não funciona, que tem que dar apoio a essas decisões  que existem e que persistem ao longo de todo o país, toda a região e todo o mundo.

A jornalista Laura Salomé, integrante da Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito, ressalta que o significado da lei do aborto vai muito além do texto.

"Não apenas as mulheres e pessoas com capacidade de gestar têm, hoje, mais direitos em nosso país, mas a lei também significa o reconhecimento de que as vozes feministas devem ser escutadas pela política tradicional. Significa a abertura de caminhos para todas as propostas a problemáticas complexas dentro da sociedade e, sem dúvida, para as tomadas de decisões."

Ex-Opus Dei vota a favor do aborto legal

Católica e ex-seguidora do Opus Dei, corrente ultra conservadora do catolicismo, a senadora Gladys González deu um dos discursos mais comentados da sessão, ao justificar seu voto positivo – mais uma vez – à lei do aborto.

"O Deus em que acredito não é um Deus que castiga, mas que é amor, compaixão, esperança", disse, em seu discurso no Senado. "Vocês realmente acreditam que é cristão condenar a mulheres que decidem interromper sua gravidez?"

Ela contou que estava grávida no tratamento do projeto de lei do aborto de 2018 na mesma câmara, e que, dias depois, sofreu um aborto espontâneo. Chegou a acreditar, assim como os fiéis e detratores, ser um castigo de Deus por apoiar a legislação do aborto. Recebeu ameaças e ofensas à época, inclusive, de familiares.

"Hoje, quero perguntar à minha Igreja: não será hora de uma autocrítica? Não será hora de pensar por quê tardamos tanto em entender a importância da educação sexual e dos anticonceptivos? Não será hora de pensar por quê nossas mulheres católicas abortam?" E concluiu: "De nenhuma maneira devemos impor nossa moralidade católica à toda população argentina."

Em outras exposições de votos contrários à lei, a base moral e religiosa foi o apoio da grande maioria das justificativas, incluindo termos como "criança por nascer" e "vida indefesa", ignorando dados de mortalidade de gestantes, de crianças obrigadas a parir e da relação entre morte por complicações de aborto inseguro e classe social.

Alterações no texto

Uma mudança no texto da lei proposta pelo Senado foi emblemática. Apesar de não alterar o sentido do projeto, houve a retirada a palavra "integral" do termo "saúde integral" dos artigos que se referem às causas que permitem o aborto após a 14ª semana de gestação: casos que atentem contra a saúde integral e em ocorrência de estupro.

A alteração foi condição de dois senadores até então considerados indecisos para que depositassem seu voto positivo ao projeto de lei: os senadores Edgardo Kueider e Alberto Weretilneck.

Posturas críticas à alteração apontam que a iniciativa reforça o controle sobre os corpos, já que o conceito de saúde integral, definido pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS), reconhece saúde não apenas pela ausência de uma doença, mas pela prevenção dela e pelo bem-estar integral, incluindo o psicológico. Os senadores defenderam que incluir o conceito de saúde integral daria margem para pedidos de aborto além dos casos de risco de vida da pessoa gestante.

Além disso, votos antes indecisos foram decisivos para não só garantir a aprovação da lei, mas também na expressa diminuição de votos contra a legalização da IVE em relação a 2018.

Um relatório comparativo entre os projetos de lei IVE tratados em 2018 e em 2020 publicado pelo Gabinete de Ministros da Argentina mostra que os votos contrários caíram 23,7%, enquanto os votos positivos aumentaram 22,6%.
Votos contrários à legalização do aborto na Câmara dos Senadores na Argentina caiu 23,7% em relação a 2018. / Senado Argentina

Também revela que o bloco governista, o Frente de Todos, teve 61% de sua bancada, maioria no Senado, apoiando a lei impulsionada pelo presidente com 25 votos. Enquanto isso, o bloco opositor macrista, o Partido Republicado (PRO), aumentou sua adesão à legalização de 44% a 62%, com  cinco votos positivos e três negativos.


Quadro comparativo de votos à legalização do aborto por blocos no Senado argentino em 2020 / Senado Argentina

 

Edição: Marina Duarte de Souza