Crise

Artigo | A invasão ao Capitólio e o fim da hegemonia dos EUA

A invasão do Congresso estadunidense na tarde deste 06 de janeiro de 2021 é um fato marcante, concordam os analistas

Brasil de Fato | Rio de Janeiro |
Se enganam os que pensam que o ocorrido é somente uma ação desesperada de apoiadores de um presidente transloucado. O processo em que está inserido a invasão é profundo e decisivo - SAUL LOEB/AFP

A invasão do Congresso norte-americano na tarde desta quarta-feira (6) é um fato marcante, concordam todos os analistas. Mas, não sobre o porquê. Se enganam os que pensam que o ocorrido é somente uma ação desesperada de apoiadores de um presidente transloucado.

O processo em que está inserido a invasão, assim como seus desdobramentos para a sociedade norte-americana e para o mundo, são profundos e decisivos.

Há tempos se discute o declínio da hegemonia estadunidense sobre o mundo e se prevê o seu fim. Obviamente que processos históricos como esse não possuem uma data exata de término e início, mas alguns fatos acabam sendo, pela sua simbologia ou pelo choque que provocam, apontados como marcos determinantes para assinalar a passagem de era. Assim foi esse 6 de janeiro.

Hegemonia não é a simples dominação. Ser a potência hegemônica do sistema mundial, como os Estados Unidos vêm sendo desde o entre guerras e mais evidentemente desde o pós-Segunda Guerra, significa liderar e ser reconhecido como liderança.

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As ferramentas para isso são, de um lado, a capacidade de produzir consenso, do outro, um formidável mecanismo de coerção pronto para ser utilizado a qualquer momento. O manejo adequado desses instrumentos permitem ao poder hegemônico apresentar seu interesse particular como o interesse comum, supostamente benéfico a todos.

Quando o governo norte-americano intervém na economia, sua iniciativa é (ou era) compreendida como a estabilização das finanças mundiais, não só a sua própria.

Quando a Casa Branca invade países na periferia capitalista, derruba governos ou aplica bloqueios e sanções, o faz com o discurso de que está estabilizando o sistema mundial e retirando de cena, ou isolando, ameaças que não se adéquam às regras “democráticas” do direito internacional (ou seja, à globalização neoliberal, ao republicanismo liberal avesso às massas e à cultura consumista norte-americana, com forte teor racista e etnocêntrico).

Trump deu organicidade à extrema-direita norte-americana e a transformou em um ator político relevante no país

Faz tempo, no entanto, que essa não é a realidade. Já em 2004, o então Presidente George W. Bush não conseguiu convencer a maioria dos aliados europeus de que a invasão do Iraque era não só um interesse particular norte-americano, mas um interesse geral (ao contrário do que foi três anos antes a invasão do Afeganistão na esteira da comoção pelos atentados de 11 de setembro de 2001).

A reconstrução da economia mundial pós-crise de 2008 – ainda não totalmente superada – se deu pelos investimentos chineses, tão colossais quanto a ausência de propostas relevantes por parte dos Estados Unidos para tal intento.

Se iniciou uma contagem regressiva para descobrir quando a economia chinesa ultrapassará a estadunidense de maneira formal (PIB), já que, na prática, é evidente para qualquer analista internacional que o gigante asiático atualmente não só possui a iniciativa econômica no sistema mundial, como este suplica para que essa iniciativa não pare.

A invasão do Congresso é apenas o ato mais espetacular de uma profunda crise civilizacional da sociedade norte-americana que anuncia o fim de sua hegemonia sobre o sistema mundial

A eleição e o governo de Donald Trump são o mais evidente sinal do fim da hegemonia estadunidense sobre o sistema mundial e das disruptivas consequências que este fato traz para a própria sociedade estadunidense e que, com toda certeza, também se desenvolverão fortemente no Ocidente e na periferia latino-americana.

Se antes de Trump já havia dificuldades imensas para a manutenção da hegemonia mundial, com sua estadia na Casa Branca qualquer pretensão nesse sentido foi sumariamente jogada para o alto. Saída do Acordo do Clima de Paris e do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), desavenças com os aliados históricos do G7 e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan)– incluindo a intenção de cobrança pela “proteção” militar norte-americana, anulação de acordos de livre comércio anteriormente defendidos pelos Estados Unidos (TISA e TPP), entre outros expedientes, deixaram bem claro que a Casa Branca sob Trump não tinha a menor intenção de “construir consenso” ou se apresentar como defensor do “interesse comum”.

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As contradições, no entanto, são mais profundas. Trump deu organicidade à extrema-direita norte-americana e a transformou em um ator político relevante no país. Com isso desatou um ataque sem proporções aos alicerces do sistema político estadunidense e por tabela de todo o mundo liberal de dentro para fora.

O país hegemônico deve ser um exemplo de estabilidade e resolução “pacífica” dos conflitos, dentro de uma liturgia que preze pela previsibilidade, tudo o que Trump e o fascismo não são. A invasão do Congresso é apenas o ato mais espetacular de uma profunda crise civilizacional da sociedade norte-americana que anuncia o fim de sua hegemonia sobre o sistema mundial. Alguns pontos mais importantes devem ser elencados:

1. A ação direta de Trump em “denunciar” que o sistema eleitoral dos Estados Unidos é fraudulento e seu impulso à invasão do Congresso quebra a ideia da “democracia” norte-americana como modelo a ser seguido. Eleições, rituais legais, posse de autoridades, tudo passa a estar em xeque pela narrativa fantasiosa da extrema-direita. Não há mais a garantia de estabilidade e previsibilidade na ordem liberal.

2. A atuação do governo Trump durante a pandemia de covid-19 foi desastrosa para a imagem do país perante o mundo. O roubo de respiradores e equipamentos de proteção individual (EPIs) destinados a outras nações, a tentativa de precificar a vacina antes mesmo da existência da mesma, a retirada do país da OMS e o negacionismo que levou os EUA a ser o país mais afetado pela pandemia demonstram a total incapacidade de produção de consenso mundial por parte da Casa Branca.

3. A lambança na apuração das eleições presidenciais e as constantes acusações de fraude instigadas pelo próprio presidente desmontam de maneira irreversível a pretensão norte-americana de delimitar quais são os países democráticos e quais as “ditaduras” existentes no mundo.

A tentativa de golpe de estado na invasão do Congresso complementa a cena, evidenciada pelas lamentações generalizadas dos âncoras de telejornais da grande mídia, muito preocupados com os “ataques à democracia” nos EUA, mas não quando os golpes de força são realizados em outras latitudes, quase sempre com o apoio da Casa Branca e dessa mesma mídia.

A “Era Trump” termina, pelo menos por enquanto, com a impensável cena de uma tentativa de golpe de estado nos EUA patrocinado pelo próprio presidente da República. Um país como este, que já perdia a liderança econômica e agora se vê sem condições de garantir o funcionamento normal de suas instituições, não possui a menor condição de liderar o sistema mundial.

A sociedade norte-americana entrou em uma profunda crise civilizacional, típica do mal-estar das potências decadentes. Os acontecimentos do dia 6 de janeiro são um caminho sem volta. São as erupções de uma sociedade que foi doutrinada com a ideia de excepcionalidade, de viver no melhor e mais democrático país do mundo.

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Como reagirão agora que estão na “segunda economia do mundo” que não consegue organizar sequer um processo eleitoral com lisura? Como o capital internacional – e seus aparelhos de hegemonia, principalmente a grande mídia, manterão a postura de superioridade civilizacional do Ocidente (branco)?

Vivemos num mundo em pleno “caos sistêmico”, onde não há hegemonia definida, com multipolaridades de poderes e envolto em uma crise civilizacional profunda. Por outro lado, um mundo onde a economia-chave é governada por um Partido Comunista, baseado em princípios marxistas, etnicamente não-branco, culturalmente não-ocidental. Os riscos são enormes. As possibilidades de mudança também.

 

*Roberto Santana Santos é Professor da Faculdade de Educação da UERJ e Doutor em Políticas Públicas. Secretário-executivo da REGGEN-UNESCO.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Leandro Melito