Militarização

Polícias sem controle de governadores abrem país para golpe, diz ex-militar

Ex-tenente-coronel avalia que Bolsonaro "articula os braços armados para fazer sua vontade ditatorial"

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Militares e ministros do governo Bolsonaro
O que justifica o comportamento autônomo das Forças Armadas brasileiras em relação à sociedade? - Marcos Corrêa/PR

O Congresso Nacional pode reduzir o poder de governadores sobre os polícias militares e civis. De acordo com informações divulgadas nesta segunda-feira (11) pelo jornal O Estado de S. Paulo, parlamentares se preparam para votar dois projetos de lei orgânica que trazem mudanças na estrutura de comando das polícias.

As propostas enfraquecem o controle do Executivo sobre as forças de segurança e ampliam a autonomia administrativa, financeira e até funcional no caso da Polícia Militar. Na opinião de especialistas em segurança, os projetos representam “um golpe em andamento” e abrem a possibilidade de uma ruptura institucional.

Entre elas, está a criação na PM da patente de general, hoje exclusiva das Forças Armadas. Também é prevista a constituição de um Conselho Nacional de Polícia Civil ligado à União.

Os projetos alteram o processo de escolha dos comandantes das polícias, que deixaria de ficar a cargo dos governadores que hoje detêm a prerrogativa sobre a segurança pública e são os chefes maiores da PM e da Polícia Civil. A sugestão, segundo os projetos, é que a nomeação saia de uma lista tríplice indicada pelos oficiais.

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O texto estabelece ainda que os comandantes-gerais da PM, dos Bombeiros e delegados-gerais de Polícia Civil tenham mandatos fixos de dois anos. Eles só poderão ser exonerados pelos governadores antes do prazo sob “justificativa” e “por motivo relevante devidamente comprovado”. Além de criar circunstâncias específicas para a atuação dos governadores sobre as polícias, as propostas também dão conta da padronização nacional dos uniformes. 

Atendendo ao bolsonarismo

Segundo a reportagem, os dois projetos contam com o lobby dos comandantes e de parlamentares da bancada da bala. As propostas atendem ainda a um desejo do governo Bolsonaro e seus apoiadores de centralização do controle das polícias.

O Estadão apurou que desde a gestão do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, o Palácio do Planalto vem sendo consultado. A pasta chegou a dar sugestões, sem que os textos tenham ainda sido formalmente submetidos à Câmara dos Deputados. 

O mais avançado seria o substitutivo ao Projeto de Lei (PL) 4.463/2001, que trata das mudanças na estrutura da PM. O texto tem como relator o deputado Capitão Augusto (PL-SP), líder da "bancada da bala" e aliado do governo. 

Para o tenente-coronel aposentado da Polícia Militar de São Paulo, Adilson Paes de Souza, a movimentação no Congresso para retirar o controle sobre as forças de segurança “é mais um desserviço à nação” e uma forma de “aproveitar a situação da pandemia, que só está se agravando, para ‘passar a boiada'”.

Golpe em andamento

Em entrevista a Maria Teresa Cruz, do Jornal Brasil Atual, Souza, que é doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, e mestre em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP), avalia que não há nenhum exagero em pensar que as propostas revelam um “golpe já em andamento”.

“Certeza que esse projeto é um passo solene e firme dado em direção a uma ruptura institucional”. A opinião do ex-tenente-coronel encontra respaldo entre outras vozes de estudiosos da segurança pública. 

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Pelo Twitter, o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, analisou que as propostas de retirada do poder dos governadores sobre as polícias “da forma como estão redigidas, transformam os governos estaduais em meros pagadores de contas, sem nenhum tipo de controle ou participação nas decisões estratégicas”. A crítica é que os projetos podem criar na polícia um “poder paralelo”. 

Na análise de Souza, a retirada de controle estadual, apoiado pelo governo federal, é semelhante à intervenção de Bolsonaro na Polícia Federal.

“Ele quer concentrar o poder do braço armado do Estado sob sua égide, o poder direto dele, para usar contra adversários políticos e provar candidatos que terão chance de derrotá-los nas próximas eleições. O que ele (Bolsonaro) quer é isso. Porque ele vai ter capitalizado muito mais que as Forças Armadas, mas milícias policiais prontas para desestabilizar determinado estado para ele aferir vantagem eleitoreira e política através de uma intervenção inconstitucional e subversiva”, aponta. 

Sem controle, maior letalidade

O ex-tenente acrescenta que o presidente da República já deu “avisos explícitos de que não vai aceitar a transmissão pacífica de poder” caso perca as eleições em 2022.

“E ele tem chance (de perder), porque está só errando. Embora ele ainda tenha 37% de apoiadores, está caindo, mas ele não vai entregar o poder. Por isso que ele está se articulando para ter braços armados para fazer a vontade ditatorial dele.”

Souza também contesta que a concessão de maior autonomia às forças policiais pode ampliar o poder de letalidade e as possibilidades de abuso por parte da polícia sobre a população. Para ele, a criação de uma patente das Forças Armadas prova que as polícias “já estão militarizadas".

"Tudo que eles querem é mais se parecer com o Exército numa estética de guerra, de atuação contra um inimigo. É ridículo, para dizer o mínimo, e mais uma vez extremamente preocupante”. 

Em 2015, um relatório da organização Anistia Internacional mostrou que a força policial brasileira é a que mais mata no mundo. E a população negra é a principal vítima da violência do Estado no país, sendo 75% dos mortos, como mostra relatório da Rede de Observatório da Segurança de 2020.

No ano passado, um estudo do FSBP também indicou que parte dos policiais defende abertamente nas redes sociais que as instituições da República sejam fechadas e que o presidente Jair Bolsonaro realize uma “intervenção” para romper com a ordem democrática do Brasil. 

Base de apoio

O próprio presidente, contudo, faz diversos afagos à categoria, com aumento de salário e questões previdenciárias, por exemplo. Além de estar presente em formaturas policiais e garantir indulto de Natal para beneficiar os agentes condenados. Desde fevereiro de 2020, no caso que ficou conhecido pelo motim de policiais militares no Ceará, a categoria deixa claro que é uma das principais bases de apoio do bolsonarismo. 

“Ou seja, já tem uma série de medidas permitindo autonomia e dizendo aos policiais ‘eu sou o pai de vocês, estou com vocês. E por favor estejam comigo quando eu precisar’. É essa a ligação direta que ele (Bolsonaro) está fazendo”, observa Adilson Paes de Souza. 

Democracia e controle

Após a exposição dos projetos no Congresso, governadores afirmaram ao Estadão que estão se mobilizando para impedir a aprovação. De acordo com o jornal, a reação mais forte partiu do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que acusou o presidente de usar da “militarização para intimidar governadores através da força policial”.

Atualmente opositor de Bolsonaro, Doria, no entanto, se elegeu em 2018 na esteira do discurso bolsonarista. E chegou a dizer, quando eleito, que a polícia iria “atirar para matar”. 

Diante da ofensiva pela ruptura democrática, o ex-tenente coronel espera agora que esse projeto de retirada de controle das polícias frente aos governadores “sirva de exemplo para esses chefes de executivo que ficam namorando o discurso autoritário e de eliminação de pessoas como medida eficiente de segurança pública”.

“Porque agora eles estão sentindo o tiro no próprio pé deles. Se nós vivemos em uma democracia, precisamos ter maior controle civil. E não guardas presidenciais para instaurar uma ditadura em nosso país”, conclui Souza.

Confira a entrevista