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Os discursos da ciência de Rousseau e a inépcia de um presidente narcisista

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"Apesar do doloroso painel da saúde, o governo Bolsonaro tripudia sobre a unidade em torno da compreensão de que é imprescindível a união de todos os povos em direção a desenlutar os que choram perdas para o impiedoso vírus" - Carolina Antunes / Agência Brasil
Desnudamos a leviandade e o instinto letal de um governo que banaliza a crise

Marilia Lomanto Veloso*

Contribuirá a ciência para diminuir o fosso crescente em nossa sociedade entre o que se é e o que se aparenta ser, o saber dizer e o saber fazer, entre a teoria e a prática? Jean-Jacques Rousseau (século XVIII)

John Kenneth Galbraith, cientista político alinhado à esquerda norte-americana, produziu para a BBC de Londres a série A Era da Incerteza (1973), que também é o título da obra festejada pela contribuição para entender os “aspectos econômico, social e político do mundo em que vivemos”. Galbraith acentua a assertiva do título que não restringe o pensamento e leva à clareza do tema básico, possibilitando “um cotejo das grandes certezas do pensamento econômico no século passado com a grande incerteza com que os problemas são enfrentados no tempo atual”.

Boaventura de Souza Santos expressa a dúvida existencial da sociedade contemporânea em sua obra, “Um discurso sobre as ciências”, (1985/1986), na qual convida o leitor a um abrir e fechar de olhos para se defrontar com o século XVIII e os primeiros 20 anos do século XX. Lembra Adam Smith, Lavoisier, Darwin, Durkheim, Marx entre cientistas que continuaram a mover o campo teórico por onde ainda transitam imagens contraditórias de um passado e um futuro de inseguranças e perigos com prognósticos de que o século XXI findasse “antes de começar”.

Estamos a 21 anos do século que começou e o tempo presente se apresenta com um cenário ambíguo e complexo, um período de transição “síncrone com muita coisa que está além ou aquém dele, mas descompassado em relação a tudo o que o habita”. Boaventura aconselha o retorno “às coisas simples”, à formulação de “perguntas simples” que, segundo Einstein, “só uma criança pode fazer, mas que, depois de feitas, são capazes de trazer uma luz nova à nossa perplexidade”. E traz a narrativa sobre Jean-Jacques Rousseau, ainda quase-menino arguido pela Academia de Dijon, e que, em sua conhecida obra “Discous sur les Sciences e les Arts”, 1750, responde à questão “razoavelmente infantil” da Academia: “O progresso das ciências e
das artes contribuirá para purificar ou para corromper os nossos costumes?”

Com igual gradação pueril, Rousseau elaborou questões para os mesmos sábios que colocaram o filósofo “contra a parede”, em tão embrionária idade. “Há alguma razão de peso para substituirmos o conhecimento vulgar que temos da natureza e que partilhamos com os homens e mulheres da nossa sociedade pelo conhecimento científico produzido por poucos e inacessível à maioria?” Suas respostas, frustrando a sofreguidão com que defendemos o lugar da ciência para soterrar o inimigo que desafia o século, o Covid-19, foram “um redondo não”. Esta síntese não busca respostas sobre a crise do paradigma dominante da ciência moderna, ou do paradigma emergente, ou dos “saltos qualitativos” do conhecimento científico para o senso comum ou deste para aquele. O que instiga a pauta é a constatação de que, apesar do doloroso painel da saúde, o governo Bolsonaro tripudia sobre a unidade em torno da mais ampla compreensão de que é imprescindível a união conjunta de todos os povos em direção a desenlutar os que choram perdas para o impiedoso vírus que arrasta para a sepultura milhões de vidas.

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Conclamar Boaventura, Galbraith e Rousseau significa extrair de seus ensinamentos subsídios para chaves de acesso aos discursos que teriam servido de inspiração para Jair Bolsonaro, para o modelo onde copiou a inabilidade de seu tacanho e catastrófico governo, os pilares paradigmáticos da gestão que se deleita em romper as estruturas democráticas do diálogo e se porta como “bestas no presépio”, brutalizando as relações diplomáticas que honravam o Brasil, erguendo barreiras ideológicas nos ambientes onde habitam a diversidade de cultura e de pensamento, a empatia, a solidariedade.

Nesse significado sócio-histórico do discurso, para além da perspectiva da língua, da gramática, tomamos o rumo de Eni Orlandi (Análise de Discurso, 2003), na acepção etmológica de “ideia de curso, de percurso, de correr por, [...] palavra em movimento, [...] o homem falando”, para construir um diálogo imaginário entre a ciência moderna “saída da revolução científica no século XVI pelas mãos de Copérnico, Galileu e Newton” e a re-significação que lhe empresta o amontoado de “bestice” que o poder federal produz no Brasil, novo “epicentro da pandemia de Covid-19” (http://saudedebate.com.br/noticias/).

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Desnudamos a leviandade e o instinto letal de um governo que banaliza a crise, acena para a morte por desprezo ao direito à vida, politiza a pandemia, desafia as evidências científicas, estimula o descrédito nas instituições de saúde, pratica publicamente o desrespeito aos protocolos assinados pelos organismos nacionais e internacionais legitimados para orientar e construir mecanismos científicos de preservação da saúde e da vida das pessoas, das gerações. Explorar os horizontes nebulosos de uma “liderança” que nega a ciência até a exaustão revela desocultar a anorexia que desumaniza a fatídica política (ou a não-política) de planejamento desalinhada dos procedimentos que o mundo vem adotando para imunizar as populações. No Brasil, a conclusão é de que a narrativa sobre o governo Bolsonaro, mais que um discurso, é um “Tratado sobre a insciência”, no contraponto da história, com recuo explícito ao obscurantismo, às trevas que antecederam a ciência, a síntese da ignorância, da “trapalhice”, da “bisonhice”, da desinformação.

A Era da Incerteza predomina no Brasil onde a ciência é decodificada pelo “mandatário” como uma vestal “idiotizada” no espetáculo narcísico coletivo produzido nos camarins do poder, sob o olhar impotente e silencioso das instituições que se pensam democráticas, validado pelos poderes que se traduzem “da República”, legitimado pela cumplicidade das togas que poderiam se vestir da roupagem constitucional para barrar a cilada que significou a eleição.

A postura desleal e de apadrinhamento do sistema de justiça aos desacertos que deformaram a fisionomia do Brasil como nação, precisa ser vasculhada, despida e exposta à opinião pública pela mesma mídia hegemônica que tanto se achatou adiante das “arengas” de ódio que elegeram Bolsonaro, hoje, arauto do desprezo pela imprensa a quem recusa credibilidade e liberdade para a interlocução com a comunidade.

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A conduta dos Ministros de Estado da Saúde e das Relações Exteriores mutilaram a face da circunspeção e a urgência nos caminhos para acesso às vacinas, destituíram o direito da população brasileira à proteção contra a fome de vidas da Covid 19, desnutriram os corpos à espera das doses que significam esperança e fizeram desaparecer para sempre pessoas por ausência de respeito ao tempo, aos cuidados e à imediatidade exigidos pela pandemia. A ciência que Rousseau desafia, a que poderá corromper os costumes, a que é produzida por poucos e indisponível para o bem da maioria, na hipótese brasileira, é aquela com a qual negociam os órgãos controlados pelo governo federal. A resposta “simples” sobre o discurso que o homem na presidência utilizou para tão aviltante script que ignora a ciência, pode ser subtraída de lugares de onde falaram sujeitos que dominam o conhecimento do senso comum, naquilo que traduz um conhecimento mistificador, conservador e sem “dimensão utópica e libertadora que pode ser ampliada através do diálogo com o conhecimento científico”. (Boaventura de Souza Santos, Um discurso sobre as ciências, p. 56).

Jair Bolsonaro e sua gestão só pensam em si mesmos, no valor que atribuem à própria ignorância sobre a ciência, para consolidar a insciência que resolveram certificar. E isso é narcisismo. Sem ousar discutir a cientificidade da psicanálise, mas pensar a intencionalidade de Freud nesse sentido, ou ainda, com lastro na defesa da psicanálise como filosofia e como arte, a resposta a Rousseau seria em favor da ciência. Jeremy Holmes (Narcisismo, 2005), ensina que os narcisistas não enxergam a erosão que produzem nos outros, atraem bajuladores servis, que se apaixonam sem correspondência do “mito”. Ao final, quem teria o impiedoso encargo de inspirar Jair Bolsonaro? A escuta de uma voz que seduziu todo um país com sua loucura? Ou o reflexo de sua própria imagem?

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Walter C. Langer, psicanalista que examinou a mente do líder da Alemanha nazista lembra um discurso que se aproxima do perfil de Bolsonaro: “Se um povo quiser se tornar livre, precisará de orgulho, força de vontade, provocação, ódio, ódio e, de novo, ódio”. Se você não estiver preparado para ser impiedoso, não chegará a lugar algum” (A mente de Adolf Hitler, http://www.leya.com.br/blog/ ). Paulo de Tarso Ibinha e Roosevelt Moisés Smeke Cassorla são chamados com as versões sobre o Mito de Narciso, dentre elas, a mais antiga, do poema Metamorfoses, de Ovídio, que revela a relação “desventurada” entre Eco e Narciso (Narciso: polimorfismo das versões e dasinterpretações psicanalíticas do mito, http://dx.doi.org/ ):

Pois que possa ele amar a si mesmo e
não obter aquilo que ama!
Deixem Narciso amar e sofrer
Pois ele nos fez sofrer
Deixem-no, como nós, amar e perceber que é inútil. (Narcisismo)

* Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, Mestra e Doutora em Direito Penal, Professora aposentada da UEFS. Promotora de Justiça da Bahia, aposentada, Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos, membro do CDH da OAB/BA, da AATR, da RENAP e da ABJD.

Edição: Rogério Jordão