festa de Yemanjá

Pandemia reconfigura homenagem à Rainha das Águas em Salvador

Praias do Rio Vermelho estão bloqueadas; embarcação com flores da Colônia de Pescadores sai ainda na manhã deste dia 2

Brasil de Fato | Salvador (BA) |

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Tradicional festa em homenagem à Yemanjá na Colônia de Pescadores em Salvador no ano de 2020 - Maurício Lobo

“Afinal que o dia dela chegou. Dia dois de fevereiro, dia de festa no mar. Eu quero ser o primeiro, pra salvar Yemanjá”, diz os versos tocados e cantados por Dorival Caymmi sobre o Dois de Fevereiro. Neste mês, já se sabe que o clima de celebração toma conta do soteropolitano, embora contemple pessoas de outras cidades, estados e até países, todos e todas se preparam para saudar Yemanjá, a rainha do mar, rainha das águas, a Mãe cujos filhos são peixes.

Este ano, devido à pandemia do novo coronavírus, vai ser diferente: as praias do Rio Vermelho estarão bloqueadas, sem o ‘virote’ desde o dia primeiro; o presente da Colônia de Pescadores sairá mais cedo, ainda pela manhã. Mas a fé e o culto à Iyá Orí, Mãe das Cabeças — como também é conhecida Yemanjá, que foi trazido com a diáspora africana no processo de escravização — se mantêm através dos séculos.

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Medidas para evitar aglomerações

A prefeitura de Salvador anunciou na última semana uma série de medidas para evitar aglomeração durante o dia de Yemanjá: fechamento total de depósitos de bebida; abertura de restaurantes e bares somente a partir das 19 horas desta terça-feira (2); proibição de food trucks, comércio informal, ambulante, carros de som e afins; e proibição da venda de bebidas alcoólicas em postos de gasolina, delicatessen, padarias e afins.

A prefeitura interditou o acesso às praias da colônia de pescadores até o restaurante Sukiyaki. Não haverá bloqueio e nem barreiras físicas para veículos ou moradores. O trânsito funcionará normalmente no bairro. Estão mantidos os serviços essenciais nesta segunda (1º) e terça-feira (2), a exemplo de hospitais, supermercados, padarias, açougues, farmácias, agências bancárias e estabelecimentos delivery.

Quem é Yemanjá?

De acordo com o Babalorixá e antropólogo Vilson Caetano, Yemanjá  é um orixá de origem iorubá, cujo culto aparece sempre associado a Obatalá, conhecido no Brasil pelo nome de Oxalá.

“Iemanjá e Oxalá formam o par mítico da criação. Acredita-se que Oxalá é um oleiro. Ele modela os nossos corpos, e Yemanjá toma conta das cabeças. Por isso que ela é também invocada como Iyá Orí, a dona das cabeças. E é na cabeça, no Orí, em que se encontra o nosso destino, o nosso caminho, ou as possibilidades para agirmos e fazermos escolhas no mundo”, explica.

Vilson conta que Yemanjá é invocada também como uma grande Mãe, que preside a fertilidade da terra e controla as chuvas. “Na mitologia, ela aparece associada a Olokun, o mar; é irmã de Olossá, a lagoa; Odo, o rio; e Aje Xalunga, o orixá da riqueza e do comércio. Também tem relações com Oxu, ou Oxupa, a lua”.

Na atual Nigéria, ainda hoje Yemanjá é um orixá cultuado nas águas do Rio Ogun pelos egbás, mas seu culto pode ser encontrado também em Abeokuta. “Eu costumo dizer que Yemanjá é a Mãe da diáspora, pois seu culto está espalhado por todos os lugares da América onde desembarcaram africanos iorubás”, diz Vilson.

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O culto a Yemanjá na Bahia

O antropólogo relata que, como Salvador é uma cidade à beira-mar, também é considerada uma cidade das águas, porque dependia das águas para sobreviver. Por isso, o culto à Rainha do Mar, que é na verdade Rainha de todas as Águas, teria se feito presente desde cedo.

“Ora pela presença africana, ora pela presença dos mouros, através dos portugueses, ora pelos povos originários, que também tinham a sua divindade que tomava conta das águas. Desta maneira, logo foi cultuada numa cidade onde abundavam fontes, rios, cachoeiras e que, logo depois da sua fundação, por volta do século XVII, ganhou um Dique”, detalha.

Para Vilson, os devotos de Yemanjá são todos e todas, “mas sobretudo o povo das águas, aqueles homens e mulheres que vivem no mar. Daí a sua relação com os pescadores e marisqueiras”, completa.

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Reconhecida em 2020 como Patrimônio Cultural de Salvador, a festa de Yemanjá é a única festa do nosso calendário que homenageia um orixá. / Jamile Araújo

O Presente de Yemanjá

Vilson, que prefere a expressão “Presente de Yemanjá” à popularizada “Festa de Yemanjá”, explica que o presente é uma oferenda. “Para as religiões de matriz africana as oferendas cumprem papel primordial. Oferenda é troca. Daí a ideia do presente. E o que é querer troca? Se troca aquilo que precisamos para viver. O presente é um agradecimento. Uma vez ao ano, não se trabalha e vai ao mar para agradecer. No continente africano ainda hoje se faz isso, se oferece comidas e mimos como pentes, tecidos e flores”. 

Em contrapartida, um problema se iniciou quando se descobriu o plástico e o vidro. “O plástico e o vidro não são presentes. Eu costumo dizer que devemos oferecer apenas o que os peixes comem, porque Yemanjá se encanta nos peixes. Ela é um grande peixe”, declara o Babalorixá.

“O presente de Iemanjá é a maior festa de origem africana que temos na cidade de Salvador”, reitera Vilson, que também cita os locais de culto à Rainha das águas em Salvador e no Recôncavo: Monte Serrat, Dique do Tororó, Rio Vermelho, Ondina, entre outros, incluindo Cachoeira, onde Yemanjá se encantou numa pedra.

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Como começou o presente

Segundo Vilson, a origem do presente está na vida da gente do mar e também em um terreiro de candomblé de nação Ijexá extinto, chamado Língua de Vaca, que funcionava onde hoje é o complexo do Departamento de Polícia Técnica do estado da Bahia, no bairro do Garcia.

“Daí toda reverência que se tem ao orixá Oxun. Oxun é a maior divindade do povo Ijexá, e ao longo do Dique do Tororó se estabeleceram várias famílias Ijexá, dentre elas a de Júlia Bugan, fundadora do terreiro Ijexá Língua de Vaca. Foi da casa de Tia Júlia que saiu, acertadamente os primeiros presentes em direção ao Rio Vermelho, que até os anos 50, por ocasião da morte de sua sucessora Emília de Xangô, eram levados em procissão pelo meio da rua, ao som de pequenos atabaques tocados também por mulheres, chamados ilu ou coigui”, conclui.

Tradição em tempos de pandemia

E a pergunta que fica é: como manter o culto à Yemanjá em tempos de pandemia, de maneira segura e responsável?

Lise Arruda, professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), filha de Yemanjá, iniciada no Ilê Oba L'oke, acredita que, neste cenário ainda pandêmico, é possível realizar algumas ações para manter a tradição de entregar o presente à Yemanjá de forma segura e evitando aglomerações. Para ela medidas como: “Buscar praias e horários diversos, já que somos nós as/os presenteados com uma vasta extensão litorânea na Bahia; Presentear em rios é também uma opção, pois, muito antes de ser considerada a Rainha do Mar aqui no Brasil, Yemanjá sempre foi e continua sendo a Rainha das Águas desde a África. A sua saudação, Odòyá (Senhora dos Rios), traz muitos itans (histórias)”.

Além disso, Lise chama atenção para o fato de ser possível louvar e homenagear os Orixás todos os dias, e que hoje o mais importante é a preservação das vidas. “Aceitar a lição que nos está sendo dada: dia de louvar e homenagear os Orixás é todo dia. Manter tradição do dia 2 é importante, mas, em uma situação de emergência de não aglomeração, a tradição pode ser reinventada, adaptada, podemos e devemos escolher outros dias. Prioridade é assegurar a vida de todas e todos”, finaliza.
 

Fonte: BdF Bahia

Edição: Elen Carvalho e Camila Maciel