ofício tradicional

BH: prefeito Kalil sanciona lei que proíbe carroças e põe em risco trabalho de 10 mil

Após denúncias que Lei 11.285 viola direitos dos carroceiros, Ministério Público e Defensoria Pública abrem procedimento

Belo Horizonte | Brasil de Fato MG |
Para defensora pública, disputas econômicas levaram a criminalizar os carroceiros por fazerem parte dos estratos mais pobres da população - Créditos da foto: Cadu Passos

 “Para ser sincero, nem acredito que isso está acontecendo. Tem colega meu, rapaz novo, com vinte e poucos anos, que mexe desde os 12 ou 13 anos com carroça, que não dorme direito. Eu acordo de noite, custo a dormir. Nossa, isso está perturbando a gente demais. Dá angústia de pensar que amanhã vai ser proibido andar com a carroça”, lamenta o carroceiro Claudio de Jesus Araújo, de 47 anos.

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Morador do Nova Pampulha, região Norte de Belo Horizonte, Claudio trabalha desde os 15 anos como carroceiro e só parou algumas vezes, por pouco tempo, quando precisou fazer alguns bicos para complementar a renda mensal.  “Meu dia a dia é arriar meu cavalo e sair para trabalhar, debaixo de sol ou de chuva. Eu só tenho a carroça, não tenho outra fonte de renda”, relata.

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A rotina de Claudio, que é parecida com a de, pelo menos, 10 mil pessoas da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), pode acabar nos próximos dez anos.

Há menos de duas semanas, o prefeito Alexandre Kalil sancionou, com vetos, a Lei 11.285 que institui no município o “Carreto do Bem”, programa de substituição gradativa de veículos de tração animal por veículos de tração motorizada. Na prática, de acordo com a lei, em dez anos fica proibida a profissão dos carroceiros.

 “A aprovação do projeto da forma como foi é trágica para Belo Horizonte. A gente está falando que 10 mil famílias vão ser diretamente impactadas pela extinção de um ofício, que é tradicional e que é parte da cultura de povos ciganos e quilombolas dentro do nosso município”, critica a vereadora Bella Gonçalves (PSOL). Por mais de quatro anos, o projeto gerou polêmica e dividiu a opinião entre os grupos de defesa animal e aqueles que consideram a medida racista e higienista.

Ainda em 2018, a Defensoria Pública abriu um procedimento administrativo questionando a tramitação do então projeto de lei que mudaria drasticamente a cultura tradicional dos povos carroceiros. A recomendação realizada para o prefeito era de veto total do texto aprovado na Câmara Municipal.

Lei 11.285 não detalha como será a transição dos veículos de tração animal para veículos motorizados

 “Essa atividade não foi proibida apenas porque algumas pessoas defendem bandeiras de bons tratos aos animais. Não temos dúvida que essa lei é inconstitucional, cheia de vícios e a forma como o procedimento se deu, desrespeitou os direitos dos carroceiros”, analisa a defensora pública Ana Cláudia da Silva Alexandre Storch.

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Segundo a defensora pública, a Lei 11.285 é um ataque aos direitos tradicionais dos carroceiros previstos no artigo 216 da Constituição Federal de 1988, que protege os “modos de criar, fazer e viver” das populações. Além disso, fere a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que condena qualquer forma de força ou coerção que viole direitos humanos e as liberdades fundamentais dos povos ou grupos tradicionais, além de salvaguardar o direito desses povos a consulta prévia, livre e informada.

Falta de participação

A falta de participação dos carroceiros na aprovação da lei, é uma das principais críticas que rondam a aprovação do projeto. Segundo Bella, desde o início, os carroceiros organizaram manifestações exigindo diálogo com o poder executivo, com os grupos defensores dos animais e com os vereadores. Algumas audiências foram realizadas, mas, segundo a vereadora, em nenhuma delas o poder executivo e os grupos favoráveis à aprovação participaram.

 “É falso dizer que houve amplo debate desse projeto na Câmara. Na verdade, foi um projeto truncado, que não ouviu devidamente os carroceiros e que foi aprovado sem sequer ter um levantamento socioeconômico, um cadastramento de quem são essas pessoas”, aponta Bella.

Claudio conta que participou de algumas audiências públicas. Em uma delas, realizada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), o carroceiro conta que ele e mais quatro companheiros foram humilhados por parlamentares que defendiam o projeto. “Eu até chorei de ódio. Sabe quando a pessoa é humilhada e não pode falar nada? Eu fico tão angustiado quando isso acontece comigo que choro de revolta, de tristeza”, desabafa.

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Na ocasião, Claudio relata que foi chamado de ignorante e de “pobre de espírito”. “Aí um político falar isso com um carroceiro que é humilde... Eu praticamente não sei ler. Eu tenho a quarta série incompleta. O que eu sei, foi a vida que me ensinou. Mas um negócio desse ai é humilhação demais”, diz.

Para que sejam tomadas providências em relação à violação de direitos dos carroceiros, um ofício foi enviado ao Ministério Público Federal e um procedimento interno foi instaurado. Outro ofício foi enviado à Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Sociais do Ministério Público de Minas Gerais. Ambos documentos foram elaborados pela vereadora Bella Gonçalves. Tanto no Ministério Público quanto na Defensoria Pública, as denúncias podem ser acatadas e transformadas em processos judiciais.

Comunidade tradicional

A história dos carroceiros remonta a origem da cidade de Belo Horizonte, antigo Curral del Rei. A relação com o rural, portanto, até hoje faz parte do universo dos carroceiros, que mantém seus cavalos, burros, mulas e éguas vivendo em currais nas periferias da Região Metropolitana. Claudio, por exemplo, tem três cavalos que vivem em cocheiras no quintal da sua casa. É ele mesmo quem limpa, “faz a crina”, tira o esterco, troca a serragem e fica de olho na saúde dos animais.

“O melhor prazer que eu tenho é quando eu estou cuidando deles. A gente sempre está ali olhando, às vezes levanta à noite e vai lá ver se está tudo bem. Eu gosto demais. Amo meus cavalos”, conta.

Para o professor Emmanuel Almada, coordenador do Kaipora - Laboratório de Estudos Bioculturais da Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg), o trabalho dos carroceiros não se resume à dimensão econômica e à geração de renda, mas é também por meio da carroça, da lida com os cavalos – muitas vezes ao longo de gerações – que esses profissionais construíram suas relações sociais e seus conhecimentos tradicionais.

Nossa, isso está perturbando a gente demais. Angustia saber que vai ser proibido andar com a carroça

 “Quando a gente fala em ‘comunidade carroceira’ a gente está se referindo a milhares de famílias que moram em Contagem, Ribeirão das Neves, Ibirité, Santa Luzia... Há uma rede muito extensa de relações, que são mantidas pelas catiras, pelos encontros na URPVs [Unidade de Recebimento de Pequenos Volumes], pelas cavalgadas. E no meio dessa relação estão, necessariamente, os cavalos”, explica.

Os cavalos são considerados pelos carroceiros como companheiros de trabalho, o que exige um conhecimento peculiar das vontades do animal, das formas específicas de comunicação e reconhecimento dos movimentos do rabo, das orelhas, do olhar do cavalo.

Desde 2018, comunidades dos carroceiros se auto declaram como comunidade tradicional, justificada por esse modo de vida específico, que é referenciado pela população. A Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais (CEPCT-MG) tem se manifestado, nos últimos meses, a favor do trabalho dos carroceiros.

Direito dos cavalos

A polêmica em relação aos direitos dos animais foi instaurada desde o princípio da proposição da lei. Grupos de defesa animal realizaram manifestações a favor da aprovação, afirmando que os carroceiros seriam responsáveis por maus tratos aos cavalos e que o trabalho na carroça seria uma forma de exploração ou escravidão animal.

Emmanuel critica duramente tais afirmações e afirma que os carroceiros sabem que existem casos de maus tratos, mas que isso não corresponde ao modo de vida carroceiro. “As organizações dos carroceiros repudiam os casos de maus tratos e demandam há muitos anos que a Prefeitura de Belo Horizonte tome providências de fiscalização, de processos educativos, que enfrentem essas situações. Essa é uma luta comum dos defensores dos animais e dos carroceiros”, afirma.

A defensora pública Ana Cláudia da Silva Alexandre Storch lembra que maltratar animais é crime e já existe legislação específica para coibir ações dessa natureza. Ela também endossa o argumento de que há um consenso entre instituições e carroceiros no combate a violência contra os animais. No entanto, para ela, não se trata disso, mas de disputas econômicas na cidade em que os carroceiros, por fazerem parte da classe social baixa, são criminalizados.

“A gente tem que considerar que é possível sim rever culturalmente valores, que as vezes até de forma tradicional são estabelecidos. Mas na verdade, estamos falando de uma atividade que atrapalha outras atividades econômicas, principalmente o comércio de caçambas”, afirma.

A vereadora Duda Salabert (PDT) se manifestou nas redes sociais a favor do projeto, uma vez que as “carroças atrapalham o trânsito, proliferam zoonoses e há ainda os maus tratos contra os animais”. “Há que se ver também que o veículo motorizado aumentará a possibilidade de lucro dos carroceiros, pois possibilitará trânsito mais rápido e manutenção mais barata, já que é caro cuidar de um cavalo”, completou.

Próximos passos

A Lei 11.285 não detalha como será a transição dos veículos de tração animal para veículos motorizados e nem estabelece detalhes sobre a reinserção econômica dos carroceiros. A Prefeitura de Belo Horizonte, em nota, garantiu que criará, por meio de uma portaria, um grupo de trabalho que envolverá os carroceiros e outras instituições públicas. Segundo o texto, o “grupo construirá, de forma coletiva, um plano de trabalho de transição, considerando ações de curto, médio e longo prazo”.

Fonte: BdF Minas Gerais

Edição: Elis Almeida