Coluna

A nova variante do bolsonarismo

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Novo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (C), e novo presidente da Câmara, Arthur Lira (dir.), foram eleitos com apoio de Bolsonaro, após liberação de R$ 3 bi em emendas parlamentares - Sérgio Lima/AFP
Com Congresso na mão e oposição atordoada, uma segunda fase do governo parece começar agora

Três adversários políticos de Bolsonaro tiveram derrotas importantes nesta semana: Rodrigo Maia, João Dória e Sérgio Moro. Com o Congresso na mão e a oposição atordoada, pode-se imaginar que uma segunda fase do governo comece agora. Mas Bolsonaro não tem nada a oferecer além de mais munição para a sua base social.

1. O apocalipse no Calendário Maia. Em maio de 2019, quando Bolsonaro elevou o tom golpista, um grupo de parlamentares reuniu-se na casa de Davi Alcolumbre. Entre as possibilidades de impeachment, forçar uma renúncia ou adotar o parlamentarismo, o grupo decidiu por um “parlamentarismo branco”, que ignoraria o Planalto e tocaria por conta própria a agenda econômica. O mandato de “primeiro-ministro” de Rodrigo Maia terminou nesta semana e, com ele, inicia uma nova versão do presidencialismo de coalizão. Para quem teve o poder de assegurar os mandatos de Temer e Bolsonaro, Maia vê sua força política evaporar quase automaticamente com sua saída da presidência. Mas Maia não é o único derrotado. João Dória recebeu agora a revanche pelo episódio da vacinação. O governador paulista também era um dos articuladores da chapa de Baleia Rossi, que incluía o apoio ao DEM para sucedê-lo em São Paulo e um possível vice do MDB em sua chapa presidencial. Se Maia não teve controle do DEM, tampouco os parlamentares do PSDB obedeceram Dória. O racha tucano teria inclusive o discreto dedo de Aécio Neves, adversário de Dória pelo controle da legenda. Mais uma vez, os partidos se apresentam mais como frentes de oligarquias e caciques regionais do que organizações centralizadas. Na prática, o DEM assume definitivamente sua natureza histórica como parte do centrão fisiológico. ACM Neto, que liderou a dissidência interna, pode ter ganho um ministério e o apoio de Bolsonaro para uma candidatura ao governo baiano em 2022. Mas também esvaziou a possibilidade de uma “frente ampla” da centro-direita, como já avisaram os partidários de Luciano Huck, e mesmo na centro-esquerda, se alguém nutria esperanças de algum tipo de aliança, o consenso é de que o DEM não é um partido confiável. Enquanto isso, a esquerda deveria trocar a “guerra de movimento”, sem o atalho do impeachment à vista, por uma “guerra de posições”, na opinião de Luiz Carlos Azevedo.

2. Ouro de Tolo. Num primeiro momento, a capacidade de cooptação do governo, com a compra massiva de votos liderada pelo ministro da Secretaria de Governo, o General Ramos, e o esfacelamento da oposição foram vistas como uma vitória esmagadora. No entanto, se é verdade que Bolsonaro demonstrou força, derrotando dois adversários diretos, Maia e Dória, e possivelmente tirando o impeachment do leque de suas preocupações imediatas, não significa que a vida será de mar calmo. O cientista político Cláudio Gonçalves Couto alerta para as particularidades deste novo presidencialismo de coalizão: Bolsonaro não tem partido, o que pode ser tanto uma fraqueza, quanto uma força nas negociações com o Congresso. Além disso, foi Bolsonaro quem aderiu ao projeto do centrão e não o contrário. É provável ainda que o centrão não cobre sua fidelidade em uma fatura única. A cada votação, o bloco vai manter a exigência de cargos e recursos. Por enquanto, a reforma ministerial deve sacrificar apenas o egresso do centrão Onyx Lorenzoni, cuja vaga no Ministério da Cidadania deverá ir para as mãos do Republicanos, e provavelmente o Ministério da Educação. Mas um dia, a sanha por cargos vai atingir o partido militar, que detém onze ministérios. Sem o parlamentarismo branco, é bastante provável também que o STF volte à cena como freio de arrumação, acentuando a judicialização da política e a politização do judiciário em que estamos metidos desde 2005. Os próprios ministros do STF já preveem que serão “dois anos difíceis”, com o Supremo em rota de colisão com o executivo e o legislativo nos temas ambientais e de segurança. Além disso, a escolha de Bia Kicis para presidir a Comissão de Constituição e Justiça foi considerada uma afronta pelo STF, pois a deputada é autora de projetos que buscam reduzir a ação do Supremo e aumentar as indicações de ministros por Bolsonaro. Por sua vez, Bolsonaro também vai ter que se acertar com sua base social. Afinal, nestes dois anos, tanto o STF quanto o Congresso foram alvos da narrativa conspiratória de que não deixavam ele governar, argumento que alimentou discursos golpistas e que, agora, tende a se esvaziar. Neste caso, é possível que, na ausência de Maia, seja Hamilton Mourão o novo alvo das teorias conspiratórias, uma opção delicada considerando o corporativismo militar. 

3. Congresso pra que(m)? A nova configuração dentro do Congresso promete resultar em mais retrocessos. Quem mostrou a cara na primeira hora foi o mercado financeiro, questionando Arthur Lira sobre os “rumores” de que pautaria uma nova tributação sobre os bancos e comprometendo-o a encerrar o assunto. O problema é que o Planalto de fato planeja criar um tributo sobre transações financeiras inspirado na antiga CPMF. Na lista de 35 prioridades do governo encontram-se a autonomia do Banco Central, reforma administrativa e tributária, e as três PECs - emergencial, pacto federativo e fundos. Porém, antes de qualquer coisa deve entrar em discussão o orçamento deste ano, que promete um embate entre os que defendem a ampliação do investimento público e os adeptos da austeridade. Já o destino do auxílio emergencial é incerto. Há quatro projetos sobre o tema no Congresso mas, apesar do compromisso dos novos presidentes das casas, o dilema permanece: o governo busca uma mínima capacidade de manobra para gerir a crise, mas nem isso o mercado parece disposto a ceder. Apesar de Paulo Guedes continuar prometendo que, agora sim virão grandes privatizações, não há acordo sobre o tema. Mas há algo que pode unir gregos e troianos. É provável que as pautas das bancadas da bala, da bíblia e do boi voltem com força, tanto para agradar a base bolsonarista, quanto porque fazem parte da ideologia do centrão e custam mais barato. Neste campo, entram os projetos de ampliação de porte de arma, excludente de ilicitude e a alteração das leis orgânicas das polícias civil e militar. Em certa medida, a gestão de Maia serviu como um amortecedor contra a sanha de destruição ambiental do governo. Com a ascensão de Lira, a bancada ruralista vê uma “janela de oportunidade” para aprovar pautas como liberação de agrotóxicos, flexibilização do licenciamento ambiental, regularização fundiária na Amazônia e revisão dos processos de demarcação de terras indígenas. E isso no momento em que o governo Joe Binden analisa a possibilidade de congelar relações com o Brasil justamente motivado pelos temas ambientais e indígenas.

4. Aqui jaz a Lava Jato. Depois de sete anos, a Força-Tarefa da Lava Jato deixou formalmente de existir no Paraná e foi incorporada ao Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado. No Rio de Janeiro, a versão carioca da operação deve ter o mesmo destino. O símbolo da “República de Curitiba” e de um projeto de poder que fracassou pela ganância e soberba chegou ao fim na mesma semana em que Ricardo Lewandowski levantou o sigilo das mensagens entre Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, obtidas na operação Spoofing. Parte de um volume muito maior do que as mensagens publicadas pela Vaza Jato no site Intercept, o material reforça as acusações de que o juiz e o promotor combinavam o jogo e, principalmente, eram obcecados pela prisão de Lula e por impedir que ele concorresse às eleições de 2018. Os diálogos são marcados inclusive por comentários preconceituosos e os promotores comemoram tanto as operações policiais contra Lula, quanto o impeachment de Dilma. Em uma das mensagens, Deltan orienta que os colegas não comemorem o impeachment em bares ou lugares públicos. O novo material revela ainda mais detalhes sobre o projeto político de Deltan, divididos em fase 1 - pressão por medidas legislativas - e fase 2 - onde a operação estabeleceria um “selo” para os candidatos sob sua aprovação. Intenções mais adequadas a um partido do que a um procurador. Ainda que este comportamento já estivesse provado nas mensagens da Vaza Jato, além de novos elementos que reforçam o pedido da defesa de Lula pela anulação dos julgamentos, o principal é que se trata de material periciado, com veracidade comprovada, jogando por terra os argumentos de Moro. O que torna uma probabilidade muito real a suspeição do ex-juiz e a retomada dos direitos políticos de Lula. Curiosamente, foi a Associação dos Procuradores quem saiu em defesa de Moro, reproduzindo os mesmos argumentos do ex-ministro da Justiça. Mas as consequências podem ser ainda maiores. Os ministros do STF sugerem que além do caso Lula, as mensagens podem reverter acordos internacionais de cooperação e até de delação premiada da moribunda Lava Jato. Para o doutor em Teoria do Direito Rubens Glezer, o STF também foi cúmplice do autoritarismo da operação e tem agora a oportunidade de restabelecer o Estado de Direito e a primazia do processo legal acima dos interesses políticos.

5. Carnaval na UTI. Apesar da chegada de um novo lote de insumos da China e da mudança de regras da Anvisa para facilitar a autorização de uso emergencial de vacinas, como a Sputnik V, a lentidão na vacinação deve continuar. O Brasil encerrou o mês de janeiro com menos de 1% da população vacinada, e se seguirmos nesse ritmo corremos o risco de passar mais três anos sem carnaval. A nova cepa da Covid-19 descoberta em Manaus (AM) já foi encontrada em seis estados brasileiros. Enquanto em Israel a vacina começa a vencer a pandemia, na Espanha a entrada de brasileiros está suspensa. Ou seja, o plano de Ernesto Araújo de tornar o Brasil um pária na comunidade internacional está se realizando. O desastre é resultado de um longo caminho. Reportagem do Sputnik Brasil lembra que ainda durante o governo Temer a Central Nacional de Armazenagem e Distribuição de Imunobiológicos (Cenadi) foi terceirizada, dificultando o controle público sobre o armazenamento e a distribuição de vacinas. Além disso, ao contrário da Argentina, o governo brasileiro nega-se a buscar autonomia nacional. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, que já sofreu cortes no ano passado, terá uma redução orçamentária de 34% este ano, o que deve impactar o desenvolvimento de vacinas nacionais. Enquanto os países europeus fecham mais uma vez as escolas, aqui dez governadores já tem data para reabri-las. A evidência de que as ações governamentais importam vem do nordeste. Lá a segunda onda está tendo um impacto menor do que em outras regiões do país. Parte disso deve-se às iniciativas articuladas pelos governos locais, como o Consórcio Nordeste, liderado pelo neurocientista Miguel Nicolélis, a ampliação da rede de proteção social para minimizar o impacto do fim do auxílio emergencial e as articulações para a compra de vacinas. Enquanto isso, Pazuello pode comemorar, pois as eleições no Congresso tiraram temporariamente da pauta o fracasso de sua gestão no Ministério da Saúde, mesmo que 80% dos médicos desaprovem sua atuação, segundo pesquisa feita pela Associação Médica Brasileira.

6. Big Brother Brasil. Em 2015 ficamos sabendo que o governo brasileiro estava sendo espionado pela inteligência norte-americana. De lá para cá, o problema da segurança de dados se agravou e deixou de ser exclusividade de personalidades políticas. Com a emergência do capitalismo de vigilância, os dados se tornaram mercadorias valiosas, e praticamente toda a população se encontra vulnerável. Em 2020 houve vazamentos de informações do Judiciário, invasão de sites do Governo Federal e do SUS. Agora, descobriu-se dois grandes vazamentos de dados, já considerados os maiores da história do país: um primeiro que inclui 223 milhões de CPFs - até de pessoas já falecidas -, que inclui também nome, sexo, data de nascimento, dados de veículos e CNPJs; e um segundo com informações sobre escolaridade, benefícios do INSS, programas sociais e renda. Acredita-se que estas informações possam estar circulando há meses ou anos na internet, e podem ter sido utilizadas para a prática de fraudes financeiras, que já atingiram mais de 60 milhões de brasileiros. O Procon e a Secretaria Nacional do Consumidor solicitaram explicações à Serasa Experian, origem provável das informações, mas a empresa nega qualquer tipo de invasão ou vazamento. A OAB cobrou da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) uma investigação e a Polícia Federal abriu inquérito sobre o caso. A ANPD, que é controlada por militares, vem sendo criticada pelo silêncio em relação ao assunto. Segundo Ronaldo Lemos, professor da UERJ, a criação do Cadastro Positivo de Crédito, instituído por lei em 2019, que centraliza as informações de todos os usuários, é uma das falhas que contribuem para este tipo de crime. Além dos anônimos, dados do Presidente da República, de deputados, senadores e ministros do STF estão sendo vendidos por hackers na internet.

7. Ponto Final: nossas recomendações.

“As marretadas do padre Julio constroem um futuro menos sombrio para SP”. Leonardo Sakamoto defende o ato de resistência do padre Júlio Lancellotti e denuncia a política higienista do governo paulistano.

Open Banking no Brasil: datas, vantagens e cuidados. E por falar em compartilhamento de dados, todos os dados bancários serão compartilhados entre as instituições a partir de agora. Rodrigo Ghedin explica como isso pode alterar em breve o sistema financeiro.

Trancoso, Arraial D'Ajuda, Caraíva: os jatinhos voaram, o coronavírus ficou. Resultado óbvio das festas ilegais de final de ano, as praias do litoral baiano registram agora o segundo maior pico da Covid, atingindo os moradores e trabalhadores do turismo dos locais.

Em estagnação: o raio-x de um problema nacional. No Nexo, o cientista ambiental Guilherme Checco discute a estagnação dos índices de acesso à água nos últimos 20 anos no Brasil.

Pochmann vê esquerda atônita e voltada para trás. Em entrevista em vídeo para o Outras Palavras, o economista Marcio Pochmann lamenta a melancolia saudosista da esquerda em não compreender a terceira revolução do mundo do trabalho.

“Se a esquerda não tiver uma plataforma democrática, popular e socialista, ela vai ser confundida com a direita”. Em entrevista para The Jacobin, o ex-deputado José Genoíno recapitula sua trajetória política, avalia a participação dos militares no governo e aponta a necessidade de mudanças para a esquerda brasileira.

As perigosas mudanças no Cadastro Único, o Bolsa Família e o Brasil rumo ao Mapa da Fome. O El País alerta que mudanças na organização do programa podem afetar todo o edifício de programas assistenciais e aumentar a exclusão dos mais pobres justo quando o país volta para o Mapa da Fome.

O programa Bem Viver sobre saúde, agroecologia e alimentação saudável, que teve início como programa radiofônico, agora está em formato audiovisual todos os sábados na TVT e nos canais do Brasil de Fato no You Tube. Você pode assistir o primeiro episódio aqui.

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* O Ponto é editado por Lauro Allan Almeida e Miguel Enrique Stédile, do Front - Instituto de Estudos Contemporâneos, e é publicado todas as sextas-feiras.

 

 

Edição: Camila Maciel