Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | Um Plano Diretor para a Porto Alegre do Século XXI

O planejamento urbano deve atentar para a degradação ambiental, a instabilidade econômica e a desigualdade social

"Em termos espaciais a cidade precisa de uma política urbanística distributiva, que realoque a riqueza, a renda e a infraestrutura" - Flávio Dutra/JU

Notícias recentes alertam para a reabertura do debate sobre o Plano Diretor de Porto Alegre. Se os discursos veiculados na mídia até aqui representam as preocupações centrais da revisão, então estamos no caminho errado. Por hora se debatem quase que exclusivamente recuos, índices de aproveitamento e potencial construtivo, densidade populacional e altura de prédios. Estes são aspectos importantes do planejamento urbano, mas estão muito longe de responder aos desafios de urbanismo das grandes cidades da América Latina no século XXI. Questões socioambientais que estão fora desse escopo precisam estar no centro do debate se desejamos uma cidade sustentável.

Viver em adensamentos tem o potencial de minimizar o efeito humano nos ecossistemas se a infraestrutura condizente com as necessidades e desejos humanos for otimizada. Se bem administradas, as cidades oferecem oportunidades importantes para o desenvolvimento econômico e social, inovação cultural e liberdades individuais. Esse dinamismo pode oferecer grandes oportunidades e arenas para mudanças socioambientais e transformação em direção à sustentabilidade. As grandes cidades, em particular, têm sido os centros de reformulação das relações entre povos, instituições e lugares.

Normalmente os planejadores consideram a infraestrutura na escala local, de distrito ou bairro, não a cidade inteira. Basicamente coordenam partes interessadas, geralmente interesses corporativos, ou gargalos de infraestrutura que surgem do crescimento. Isso não é mais suficiente. Precisamos de um novo paradigma. As cidades do século XXI evoluem de industriais para financeiras e informacionais em uma sociedade em rede. Aumenta a dependência do mundo globalizado, a concentração do poder, a pobreza e a desigualdade. A transição demográfica e o envelhecimento da população aceleram. A infraestrutura e a paisagem urbana envelhecem, rejuvenescem e se modernizam de forma desigual. O estilo de vida urbano se estende às áreas rurais, desafiando o sentido do que seja urbano.

Para persistirem como centros de vida, as cidades terão que responder a três desafios principais: degradação ambiental, instabilidade econômica e desigualdade social. Eles envolvem diversas questões emergentes, como o crescimento da pegada ecológica per capita, a acentuação da anomia, a vulnerabilidade a pandemias, as mudanças climáticas e a indução a novos modos de reprodução da sociedade pela aceleração tecnológica. De particular preocupação são os riscos da degradação ambiental e precariedade da infraestrutura na exclusão socioambiental, coesão social e direitos individuais.

Nas cidades latino-americanas cresce a violência e a insegurança. Como resposta, as elites urbanas se apartam da cidade, teletransportando-se entre bunkers chiques. A esfera pública então se degrada, incluindo vivenda, transporte, comércio e serviços. A cidade se espalha e se reorganiza, aumentando a pegada ecológica sob múltiplas formas – redundância de espaços, aumento das distâncias, maior consumo de descartáveis, água e energia, maior demanda de expansão da infraestrutura em detrimento da manutenção.

Os serviços prestados pela biodiversidade e ecossistemas urbanos, essenciais e em declínio, precisam ser incorporados explicitamente no planejamento. Esses serviços incluem: produção de alimentos; oferta, fluxos e uso da água; moderação do calor, umidade e ruídos; oportunidades de recreação, desenvolvimento cognitivo, senso de pertencimento e coesão social; e oferta de habitat para a biodiversidade. Entre os fatores que desafiam essa faceta do planejamento estão o aumento dos estoques e fluxos de nutrientes, a contaminação química, luminosa e sonora, o favorecimento de espécies sinantrópicas e exóticas, a perda e fragmentação de hábitats e a criação de hábitats inéditos e armadilhas ecológicas.


Para o autor, repensar o plano diretor da cidade é tarefa fundamental, com atenção para que não se torne mera ação reativa a interesses corporativos interessados em expandir vantagens construtivas / Flávio Dutra/JU

Frente a esses desafios, pensar reativamente nas demandas de empreendedores e pressões de crescimento é uma resposta inadequada. Induzem investimentos localizados, que concentram recursos e não saneiam a cidade, apenas realocam a insegurança e a degradação. Do mesmo modo, focar em cidades inteligentes, big data e algoritmos pode exacerbar a exclusão geográfica. A base para respostas adequadas, proativas, está nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Existe uma meta explícita para cidades sustentáveis e resilientes (ODS 11). Outros ODS interagem com este, como aqueles associados à mudança climática, crescimento econômico e oportunidades, energia, alimentos e segurança hídrica, igualdade de gênero, saúde, pobreza e resiliência de infraestrutura.

Em termos espaciais a cidade precisa de uma política urbanística distributiva, que realoque a riqueza, a renda e a infraestrutura. O novo paradigma é a promoção da resiliência urbana, a capacidade do sistema urbano e de todas as suas redes socioambientais e sociotécnicas de manter ou retornar rapidamente às funções desejadas frente a perturbações para se adaptar a mudanças e para transformar rapidamente os sistemas que limitam a capacidade adaptativa futura. Mas, se o sistema urbano atual for disfuncional e injusto, essa resiliência pode não ser uma coisa boa e uma transformação será necessária. Aspectos-chaves a considerar incluem a promoção do pertencimento e o resgate das áreas urbanas tradicionais e significativas.

Existem também um vínculo direto e um círculo vicioso nas cidades latino-americanas entre corrupção, violência, insegurança, pobreza e degradação e exclusão socioambiental cada dia mais notório no Brasil. A cidade precisa de mecanismos de controle social e um urbanismo que reverta a tendência de vigilantismo, privatização e enclausuramento do cotidiano. As comunidades periféricas precisam ser emancipadas, priorizando água, sanitarismo, espaços públicos e áreas verdes. A violência e a insegurança não deveriam interessar aos investidores, pois aumentam riscos e custos, beneficiam os serviços globalizados em detrimento do comércio local e afugentam ou enfraquecem consumidores em potencial.

Visões de futuro servem de base para todo o planejamento estratégico. Minha visão de futuro é de uma cidade utópica, inclusiva, resiliente, que tenha seus habitantes como o centro das preocupações e os agentes públicos, sociedade civil e incorporadores como instrumentos. Uma cidade sustentável, verde, saudável e inclusiva.

* Demétrio Luis Guadagnin é professor do Departamento de Ecologia da UFRGS.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Jornal da Universidade UFRGS