Relação com a terra

PAA e Pnae favorecem luta contra a colonialidade na comunidade de Monte Alegre (ES)

Programas de incentivo à produção de alimentos saudáveis ajudaram no resgate cultural da comunidade quilombola

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A comunidade realiza festivais de receitas ancestrais como forma de resgate de sua própria cultura - Acervo - Comunidade Quilombola de Monte Alegre - Bicho do Mato
Quando o negro se reconhece como autônomo da sua terra é muito forte dentro da nossa luta

O final da década de 2000 é um marco na luta secular diante da colonialidade para a comunidade quilombola de Monte Alegre, em Cachoeiro de Itapemirim (ES). O resgate da cultura ancestral do povo preto no local está associado a conquistas em programas de incentivo à produção de alimentos saudáveis e combate à fome

Oficialmente, a comunidade foi formada após a abolição da escravatura, na antiga Fazenda Monte Alegre. A mesma terra que abrigou a exploração do trabalho e a repressão cultural é agora local de resgate de ancestralidades e tradições do povo preto.

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Essas histórias são contadas pelo agricultor Leonardo Ventura, cuja atuação no território se assemelha aos griots africanos, como uma verdadeira biblioteca viva da comunidade.

Leonardo Ventura juntou as memórias da oralidade e da escrita ao escrever o livro “Simplesmente Monte Alegre”, editado pelo Cachoeiro Cult. 


Leonardo Ventura conhece e registra as origens de todas as famílias quilombolas de Monte Alegre / Divulgação

O escritor e agricultor também atua pela educação no local. De olho na Lei 10.639 de 2003, ele preparou a comunidade para receber as escolas da redondeza e fazer valer o ensino da história africana e afro-brasileira.

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Mas o resgate cultural da comunidade é um processo, e encara diversos desafios. Um deles é o pouco espaço para o desenvolvimento de uma agricultura ancestral

“No ano de 2005 demos entrada no Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] pedindo a titulação e ampliação do nosso território para que as famílias tivessem condições de viver da terra, porque hoje a área que ocupamos é praticamente aquilo que sobrou dos nossos ancestrais, que compraram a terra no passado, só que alguns netos e bisnetos venderam as terras que herdaram dos seus ancestrais", registra.

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A abolição da escravatura não eliminou a influência política e econômica dos fazendeiros que permaneceram na região. Assim, boa parte das terras que foram conquistadas após a assinatura da Lei Áurea voltaram para os latifundiários.  

Atualmente, cerca de 700 pessoas - organizadas em 150 famílias - vivem em 40 hectares. Apesar do pouco espaço e da necessidade de ampliação do território, o acesso a programas como Aquisição de Alimentos (PAA) e Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) marcou a vida de Monte Alegre.

Sara Ventura Pacheco, filha de Leonardo, lembra que os programas foram conquistados a partir de 2009, favorecendo outras relações da comunidade quilombola que utilizava os poucos espaços disponíveis para vender aos fazendeiros dos arredores. 

“Isso mexeu muito com a autoestima da comunidade, com o pensamento de que ‘olha, eu não preciso trabalhar para outra pessoa, eu não preciso sair da comunidade para ter uma vida melhor. Eu posso daqui tirar um valor que eu sobrevivo bem e posso fazer aqui a minha família’, o que tem atraído os jovens para dentro dessa nova realidade dentro da comunidade”, analisa. 


Comunidade recebe escolas das redondezas / Acervo - Comunidade Quilombola de Monte Alegre - Bicho do Mato

Sara é bióloga e está cursando o doutorado em Etnobiologia e Conservação da Natureza, na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Ela afirma que a agricultura é uma forma de valorizar e resgatar a cultura negra de Monte Alegre em tradições como relação com a natureza e culinária.

“Quando o negro se reconhece como autônomo da sua terra é muito forte dentro da nossa luta. Porque a terra é a identificação. Não adianta eu fazer Monte Alegre em outro lugar. Monte Alegre é onde ele está. Então as nossas raízes estão aqui. A agricultura vem para trazer essa raiz, aflorar o crescimento dessa árvore que era a comunidade que estava sendo sufocada. Então tudo isso está ligado à raiz da terra”, afirma. 

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Apesar da diminuição de recursos para o PAA e o Pnae pelo país nos últimos anos - sobretudo na atual gestão do governo Bolsonaro -, Sara lembra que a coletividade em Monte Alegre deu novos passos ao conquistar os programas.

A resistência contra o poder da colonialidade no local passa também pela constituição de uma nova relação e apropriação da terra.  

“Quando foram retirados esses programas - o Pnae diminuiu e o PAA quase sumiu -, as pessoas não desistiram de suas terras, não retornaram para trabalhar para os fazendeiros. Ao contrário, mostrou-se a força. Foram criados grupos de produtores. As pessoas passaram a se envolver em outras coisas”, declara.

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Além de hortas orgânicas, Monte Alegre desenvolve apicultura, criação de pequenos animais e produção de laticínios. Diante de desafios e conquistas, a comunidade resiste e sonha com novos passos de desenvolvimento local, a exemplo de jovens que buscam as ciências do campo para se juntar às raízes quilombolas da comunidade.  

Edição: Douglas Matos