Excesso

Para psiquiatra, pandemia reforça necessidade de controlar o tempo online

Os prejuízos são muitos, mas acometem mais crianças e jovens devido ao estimulo de mídias sociais e jogos eletrônicos

Brasil de Fato | Belém (PA) |
Com a pandemia, o contato com o mundo externo é por meio do computador, celular ou tablet
Com a pandemia, o contato com o mundo externo é por meio do computador, celular ou tablet - Bruno Fortuna/Fotos Públicas

A pandemia do novo coronavírus acentuou ainda mais a relação que tínhamos com o meio virtual. Seja para trabalho, consumo de informações ou entretenimento. O acesso é feito por meio de computador ou celular, o que leva as pessoas a ficarem praticamente o dia todo conectadas. 

No entanto, especialistas em saúde mental apontam que o excesso de tempo em frente à tela pode levar à exaustão mental, assim como aumentar a probabilidade de transtornos mentais como a depressão. 

O Brasil de Fato conversou com o psiquiatra Raphael Luna. Ele é formado pela Universidade Federal do Pará (UFPA), fez residência em psiquiatria no Hospital de Clínicas Gaspar Vianna, que é referência em Psiquiatria, Cardiologia e Nefrologia e também é psiquiatra da Polícia Militar do Pará e do Tribunal de Justiça do Pará.

Brasil de Fato: O uso excessivo de telas pode trazer consequências a longo prazo? Se sim, quais?

Raphael Luna: Acho muito importante esclarecer situações que fazem parte do nosso cotidiano. Estamos vivendo há quase um ano essa situação da pandemia e, de fato, percebemos que aumentou muito o uso do celular, tablet, computador e televisão, e sim, eles podem causar diversos problemas.

Esses problemas podem ser de ordem nutricional, uma vez que a distração causada pela tela [celular, televisão, tablet] interfere muito nos sinais fisiológicos e de saciedade, fazendo com que a pessoa faça escolhas inadequadas como o consumo exacerbado de produtos com alto teor calórico e baixo teor de nutrientes.

Com isso, surge a obesidade ou o contrário, às vezes a pessoa pode até ter um estado nutricional de carência ficando muito tempo nessas telas de forma que ela não consegue ter um aporte calórico suficiente e acaba tendo emagrecimento grande.

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Outro ponto são os problemas musculares, como é o caso dos problemas posturais. Ou seja, a pessoa que fica horas no celular ou na televisão com concentração extrema pode ter dores de cabeça, dores na coluna, por esse uso inadequado. Muitas vezes, a gente pega o celular com uma posição errada e isso pode gerar dores osteomusculares.

Esse excesso também pode ocasionar dificuldades na visão, porque muitas telas têm o que a gente chama de luz azul, que são emitidas pelos aparelhos. Isso pode ocasionar problemas no globo ocular, entre eles, uma degeneração macular [perda no centro do campo de visão], vista cansada, o olho fica mais seco, entre outros. A cognição também é afetada pelo uso excessivo. 

Por outro lado, o excesso também faz com que o cérebro amadureça muito rápido, ou seja, se as células do cérebro amadurecem muito rápido, consequentemente, elas também envelhecem mais rápido.

Na área da psiquiatria há também os fatores emocionais causados por excesso de uso como é o caso das mídias sociais e dos jogos que têm estratégias que facilitam a transmissão do neurotransmissor, que é a dopamina. 

A dopamina está muito relacionada com a questão da dependência. Alguns estudos têm mostrado que esse excesso de tela, libera um excesso de dopamina, que é muito parecido com quem usa outros tipos de droga que, justamente, é responsável por esse eixo do prazer que a tela acaba gerando gerando e ocasionando sim, um certo grau de dependência.

Todo esse processo pode levar ainda a uma imaturidade emocional, isso porque muito tempo na tela pode levar a um prejuízo na socialização real. 

Isso acaba sendo pior nas crianças, que têm uma imaturidade emocional e que o cérebro não está tão bem formado. Ou seja, quem já tem uma propensão à ansiedade com sintomas depressivos pode vir a ter um transtorno de ansiedade ou depressão.

Vale dizer ainda que as nossas crianças precisam passar por situações cotidianas, justamente, para poder amadurecer o comportamento. Nesse ponto, as telas têm gerado uma grande gama de ansiedade, já que é um excesso de informações, nas mãos, de forma muito rápida.

Quando a pessoa vai para o mundo, onde as coisas não são tão rápidas quanto na tela, essa pessoa fica menos tolerante, mais irritada, não consegue esperar e fica com baixa tolerância. Tudo isso gera um grau de ansiedade muito grande.

E, por fim, a própria insônia pode ser um sintoma, principalmente quando o uso é muito próximo ao horário do sono. Isso dificulta a produção da melatonina, que é justamente o hormônio que faz com que a gente inicie o nosso sono.

Sem esse descanso, digamos assim, o nosso cérebro fica funcionando com uma intensidade maior, já que a tela gera uma excitabilidade, isso faz com que aumente o cortisol, a adrenalina e faz com que o sono não seja de qualidade.

As queixas relacionadas à ansiedade, insônia, falta de concentração, diminuição de autoestima têm aumentado na pandemia? De que forma lidar com esse momento e ao mesmo tempo manter-se protegido do novo coronavírus? 

Nós precisamos ter algumas estratégias, por exemplo, estar em casa não quer dizer que você precisa estar improdutivo. Você pode manter em casa o ócio produtivo, que é justamente manter uma rotina dentro da sua casa.

Uma dica é montar um cronograma e que nesse cronograma você possa inserir a sua família, se você tiver família ou as pessoas que façam parte da casa, de forma que se tenha uma rotina que possa ser feita com todos, como arrumar fotos dos álbuns de família, consertar objetos, organizar utensílios. Se a família conseguir estar integrada, isso é muito bom.

Trabalhar a espiritualidade também é importante. Muitos estudos têm mostrado que quando a gente mantém uma espiritualidade com resiliência, com fé, isso ajuda o sistema imunológico, ajuda também a superar as adversidades, que podem vir a acometer as pessoas e vale ressaltar que espiritualidade é diferente de religiosidade.

Espiritualidade é essa conexão com algo superior e a religiosidade é estar nos templos, digamos assim, coisas que não está sendo possível manter, seja ir a uma missa católica, templo evangélico, entre outros. Mas encontrar formas de mantê-la.

A atividade física também é muito importante. Sei que eventualmente não é possível sair em decorrência do isolamento social, mas se a pessoa morar em um prédio e ela consegue chegar ao andar pela escada, isso já ajuda e existem também aplicativos gratuitos que podem ajudar nessa rotina de atividades físicas em casa ou até mesmo contratar profissionais capacitados, principalmente quem tem idosos em casa que precisam de um fisioterapeuta ou terapeuta ocupacional para que possa fazer essa movimentação.

Movimentar o corpo também é uma estratégia muito importante para mantermos essa sanidade mental, essa qualidade física, frente ao que a pandemia está nos impondo nesse momento.

Para manter a saúde mental o indicado é fazer pausas ou até mesmo se desligar totalmente das mídias sociais?

O celular e não só o celular, mas as mídias, as telas, os jogos eletrônicos foram feitos para chamar atenção, eles foram feitos para consumir o nosso tempo e, quanto mais a gente usa, mais eles vão estar nos dando esse estímulo.

Logo, é muito importante ter uma regularidade. Agora, não considero parar por completo, até porque isso hoje é quase impossível que se desligue completamente. Inclusive nesse momento, e também porque precisamos do celular para nos comunicarmos com as pessoas, já que estamos em isolamento.

Até porque o isolamento social não quer dizer isolamento afetivo. Nesse ponto, o celular entra para nos ajudar a nos comunicarmos com os recursos audiovisuais, mas sim, é importante manter essa organização.

Da mesma forma que falei da questão da rotina é muito importante ter essa rotina até com o celular. Questionar-se: quanto tempo eu vou ficar hoje no celular e ter esse definido.

Uma estratégia interessante é usar alarmes e eu até considero que uma pausa de cinco a dez minutos, a cada 30 minutos, possa ajudar a sedimentar as informações.

É importante também respeitar horários como café, almoço, jantar ou durante as refeições desligar o celular, e que essa refeição seja feita com a família em um momento de agregação do círculo familiar.

Outro ponto é usar o celular a até no máximo uma hora antes de dormir. Essa é uma estratégia interessante para evitar problemas com sono.

Desligar totalmente é impossível, mas se a gente consegue manter ao longo do dia momentos específicos de uso e não uso do celular conseguimos evitar os prejuízos que já listei anteriormente. 

Segundo uma pesquisa da Universidade de Londres, já é possível fazer uma ligação entre a depressão e o uso das redes sociais, principalmente entre as garotas, isso porque os pesquisadores analisaram que os processos poderiam estar ligados a experiência de assédio on-line ou cyberbullying. Como profissional que atua nesse meio, essa pesquisa pode ser confirmada aqui no Brasil? 

Sim, tem uma relação muito grande. Atualmente não há tantas pesquisas quanto a isso, mas se levarmos em consideração que o Brasil hoje é o 3⁰ país do mundo no ranking de pessoas que mais usam o celular, a gente percebe que esse uso pode sim, vir a se tornar nocivo, principalmente nessa faixa etária dos adolescentes e nas mulheres.

Na adolescência, porque a pessoa está em construção da sua personalidade, da sua autoimagem e como ela ainda está em formação, elas são mais vulneráveis e influenciáveis pelos grupos aos quais ela está pertencendo.

A autoestima também não está tão bem construída e nesse ponto o gênero feminino tem essa dificuldade maior nessa assimilação. Isso porque existe muita comparação.

Ao entrar em uma mídia social como o Instagram e Facebook, você vê várias imagens, que muitas vezes são até editadas, manipuladas. Imagens que não refletem a vida real e na tendência de ter o corpo ideal, a vida ideal do outro, vem o sentimento de frustração, de ansiedade e sintomas depressivos. A pessoa se fecha cada vez mais no seu mundo, naquele mundo que é irreal, mas é o mundo que seria ideal para ela.

Temos percebido muito isso nas nossas crianças, nos nossos jovens, que hoje estão adoecendo muito mais do que acontecia antigamente. A gente percebe que as crianças de hoje estão se automutilando com facilidade maior, estão trazendo sistemas ansiosos/depressivos com muito mais facilidade. Assim, é preciso estar muito atento dentro de casa e perceber até que ponto esse excesso do uso de tela pode ser prejudicial. 

Qual é o ponto de equilíbrio e como procurar ajuda?

É importante salientar que é normal, nesse momento em que estamos sentindo medo e insegurança, sentir ansiedade ou ter noites não dormidas, sentir um pouco mais de tensão.

No entanto, quando esses sentimentos se tornam muito frequentes, quando eles se tornam muito intensos ou começam a causar problemas orgânicos, seja de dor de cabeça, alterações gastrointestinais, alteração na alimentação, o sono começa a ficar prejudicado, o humor começa a alterar.

Quando isso for muito intenso e muito frequente, causando disfunção no cotidiano dentro da sua casa, no seu trabalho, na sua vida afetiva é importante procurar um profissional da saúde mental quer seja na psicologia, que seja na psiquiatria.

O psicólogo vem para tentar ajudar no âmbito comportamental, na rotina de como organizar essa rotina frente a situações que estão acontecendo. Nesse contexto, se você percebe que porventura existe uma situação orgânica sendo causada por essas sensações que estão mais extremadas, nesse ponto a pessoa precisa procurar um psiquiatra, que é o médico habilitado a tratar os transtornos que podem vir devido a essas circunstâncias que acabam sendo mais cronificadas pelo tempo da pandemia.

Edição: Rodrigo Durão Coelho