Tigray

Conflito na Etiópia deslocou 220 mil pessoas e pode levar a genocídio

“Em acampamentos lotados, famílias e crianças precisam urgentemente de comida, abrigo e água potável”, diz Unicef

Tradução: Ítalo Piva

Peoples Dispatch |
Refugiados do conflito na província de Tigray estão sem água potável, saneamento básico e sendo vítimas de atrocidades em massa - Sky News

A população da região de Tigray, no extremo norte da Etiópia, enfrenta fome, falta de água potável, medicamentos, saneamento básico e atrocidades sexuais em massa, alerta o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Informes do último mês apontam que a região estaria à beira da fome e do genocídio.

Na última terça-feira (16), o Unicef anunciou que mais de 222 mil pessoas, a maioria mulheres e crianças, foram deslocadas internamente pela guerra entre as tropas federais etíopes e a Frente de Libertação do Povo Tigray (TPLF), que ocorre há quase três meses e meio.

“Vivendo em acampamentos lotados, crianças e famílias precisam urgentemente de comida, abrigo e água potável (...). Imunizações foram paralisadas, instalações de saúde e água foram danificadas ou destruídas e suprimentos essenciais foram saqueados”, disse o comunicado do Unicef.

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O chefe regional de comunicação do órgão das Nações Unidas na África Oriental e Austral, James Elder, descreveu a situação como "profundamente preocupante", acrescentando que "há pouco combustível para operar os sistemas de água e saneamento, então famílias estão bebendo água contaminada, o que por sua vez expõe as crianças a doenças mortais”.

As “avaliações limitadas da ONU e de parceiros que pudemos realizar mostram que a fome é uma preocupação muito séria, com aumentos alarmantes de desnutrição aguda”, disse Elder.

O acesso físico à região continua, em grande parte, vetado para jornalistas. Telecomunicações e acesso à Internet também permanecem severamente restritos. O governo apenas concedeu um acesso extremamente limitado para trabalhadores humanitários internacionais.

Desde o dia 12 de fevereiro, apenas 53 funcionários de agências da ONU e outras ONGs foram autorizados pelo governo federal a entrarem em Tigray para fornecer assistência humanitária.

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De acordo com o documento Atualização Humanitária Etiópia-Tigray, feita pelo Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (UNOCHA) no dia 13 de fevereiro, “muitas das áreas rurais, onde 80% da população vivia antes do conflito, permanecem isoladas do setor de assistência humanitária".

O UNOCHA também disse que “existem relatos surgindo de parceiros, como a Sociedade da Cruz Vermelha Etíope (ERCS), de crianças famintas e traumatizadas por experiências violentas”.

“Você vê que a pele deles realmente está nos ossos. Não há nenhum alimento no corpo deles”, disse Abera Tola, presidente do ERCS, em uma entrevista coletiva no dia 10 de fevereiro. O número de mortes por fome,“pode ser um, dois ou três, mas você sabe que depois de um mês serão milhares. Depois de dois meses, serão dezenas de milhares”, disse ele. Apesar disso, “80% do território Tigray está inacessível neste momento”, acrescentou.

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Operando sob o regime cada vez mais autoritário do governo federal, liderado pelo primeiro-ministro Abiy Ahmed, o ERCS emitiu um esclarecimento no dia seguinte, dizendo que sua declaração não implicava que o governo federal tivesse restringido o acesso do ERCS, mas sim que a falta de recursos havia limitado sua capacidade de alcançar os necessitados.

A guerra civil em Tigray

A guerra na região de Tigray começou em 4 de novembro de 2020, quando o PM Ahmed, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2019 por fazer as pazes com a Eritreia, vizinha ao norte da Etiópia, ordenou que tropas federais entrassem na região para desalojar a Frente de Libertação do Povo Tigray (TPLF) do governo estadual.

Dizem que isso foi uma retaliação a um ataque à base militar do governo federal na capital de Tigray, Mekelle, por tropas leais à TPLF. No que foi prometido ser uma rápida campanha militar para restaurar a autoridade do governo federal na região, tropas federais capturaram Mekelle no dia 28 de novembro. Eles foram auxiliados por milícias controladas pelo estado de Amhara, vizinho ao sul de Tigray, que tem um histórico de animosidade contra os Tigrayans.

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A TPLF era anteriormente a força dominante da política etíope, mas foi marginalizada após a ascensão de Ahmed. Antes de Ahmed chegar ao poder como reformador, a TPLF era vista por grandes setores da população fora da região de Tigray, como responsável por uma série de repressões contra liberdades políticas. Um amplo setor das forças progressistas também apoiaram a agenda nacionalista de Ahmed, que buscava superar as divisões étnicas no país.

No entanto, uma série de liberdades políticas e de imprensa, que Ahmed havia tomado medidas para proteger, agora estão sendo pisoteadas pelo seu próprio governo. Nas eleições regionais realizadas na província de Tigray, em setembro de 2020, em violação da decisão do governo federal de adiá-las devido à pandemia da covid-19, a TPLF obteve a esmagadora maioria dos votos.

A maioria dos soldados da TPLF já recuou para áreas montanhosas, supostamente iniciando uma guerra de guerrilha contra as tropas federais, consideradas ocupadoras por uma grande parte do povo tigrayan.

Há muito tempo, a TPLF também acusa as tropas da Eritreia de estarem envolvidas no ataque à região. Além disso, eles se opõem ao tratado de paz entre a Eritreia e o governo etíope. Embora o governo da Eritreia continue negando a acusação, vários relatos na mídia indicam o contrário.

Tropas eritreias e federais da Etiópia, são acusadas de cometer atrocidades em massa contra civis da região de Tigray.

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“Estou muito preocupada com as graves acusações de violência sexual na região de Tigray, na Etiópia, incluindo um grande número de supostos estupros na capital, Mekelle. Também há relatos perturbadores de indivíduos sendo forçados a estuprar membros de suas próprias famílias, sob ameaças de violência iminente”, diz Pramila Patten, representante especial da Secretaria-Geral da ONU para Violência Sexual em Conflitos.

“Algumas mulheres também foram forçadas por militares a fornecerem sexo em troca de produtos básicos, ao mesmo tempo que os centros médicos indicaram um aumento na demanda por contracepção de emergência e testes para infecções sexualmente transmissíveis (DSTs), que muitas vezes são indicativos da ocorrência de violência sexual dentro de um conflito”, afirmou Patten.

Ela acrescentou que as vítimas das atrocidades também incluem "mais de 5 mil refugiados eritreus dentro e ao redor da área de Shire, vivendo em condições terríveis, muitos deles supostamente dormindo em um campo aberto sem água ou comida", o que indica que os apoiadores da TPLF também pode estar cometendo atrocidades.

*Publicado originalmente pelo People's Dispatch.

Edição: Vivian Fernandes