ECONOMIA

Dolarização na Venezuela: a rua onde tudo custa um dólar

Em região empobrecida de Caracas, a moeda estadunidense é a mais usada no comércio local

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
O movimento é constante na rua 1 dólar, que fica a uma quadra do metro de El Valle, zona sudoeste de Caracas. - Michele de Mello / Brasil de Fato

Já imaginou uma rua onde tudo custa um dólar ou, no caso do Brasil, 5 reais? Pois esse lugar existe e está a uma quadra do metrô El Valle, região sudoeste de Caracas, Venezuela. A Avenida Carjigal é a porta de entrada para a favela "El 70", uma das mais antigas e populosas da região.

Lar de cerca de 160 mil venezuelanos, o lugar mantém a tradição chavista nos murais pintados com consignas e nomes de ex-candidatos à Assembleia Nacional. Mas os diálogos entre os venezuelanos expressam a preocupação com a comunidade e a nova lógica do comércio local.

"Aqui ninguém mais quer saber de bolívares, agora é só dólar", comenta uma senhora aposentada que para complementar a renda abriu uma pequena loja de verduras no térreo de casa. 

Pão, hambúrgueres, cachorro-quente, arepa, arroz chinês, combo de três verduras, farinha de milho, azeite: esses e outros produtos processados podem ser encontrados ali a um dólar estadunidense, que segundo o cambio oficial, representa 1,8 milhão de bolívares soberanos, equivalente a 4,5 vezes o salário mínimo atual. 

Em 2020, o PIB venezuelano retraiu cerca de 20%, segundo levantamento da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal), e a inflação foi de 1.460%, ainda muito alta, mas dez vezes menor que os valores médios registrados nos dois anos anteriores. 

Diante deste cenário, os comerciantes da "calle one dólar" conseguiram colocar em prática algo que o governo bolivariano vem tentando implementar desde 2018: controle dos preços. 

"Para manter o preço fazemos das tripas coração. Diminuímos a quantidade, mas não a qualidade. Se perdemos qualidade, perdemos a clientela", comenta Argenis Palomares, que possui um local de venda de pães: 10 unidades a US$1. 

Para manter o valor do produto final inalterado, os comerciantes têm mesmo que fazer malabarismos, já que o Índice de Preços ao Consumo (IPC) teve uma variação mensal de 27,9% em 2020.

"Nós nos ajudamos porque compramos no atacado. Nós queremos ajudar os trabalhadores e o povo. Num sábado são 500 cachorros-quentes e 600 hambúrgueres. A comunidade sabe o que nós oferecemos aqui, por isso vem", comenta Richard Rodríguez, que trabalha há 15 anos numa das barracas de hambúrguer e cachorro-quente mais movimentada da Avenida Cajigal.

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Na zona leste, que concentra a maior renda per capita de Caracas, muitos venezuelanos que acumulavam capital no exterior resolveram investir em novos negócios dentro do país. A maioria das novas empresas foi aberta durante a pandemia. 

Assim surgiram os aplicativos por delivery, que ajudaram a democratizar a circulação de dólares na Venezuela, mas também abriram caminho para uma nova modalidade de precarização do trabalho. 

Já na zona oeste de Caracas, os novos restaurantes, bodegas e pequenos negócios chegaram com os venezuelanos que retornaram da Argentina, Peru, Equador, Chile e Brasil com algum dinheiro guardado, o suficiente para um investimento inicial de compra de mercadorias. 

"Antes eu tinha outro tipo de comércio, mas na hora de abastecer o local, a desvalorização do bolívar soberano já não me permitia comprar mais alimentos", relata Jesús Hernández, que há cerca de um mês inaugurou um posto de frango frito. O negócio vem chamando atenção pelo sabor do produto ser semelhante ao das redes de fast food.

"Recorri a essa opção de comida rápida para que as pessoas possam comer algo saboroso e barato. Faço um equivalente [na quantidade] para que a comunidade seja favorecida", afirma. 


Na Avenida Carjigal, zona periférica do bairro El Valle, todos os produtos custam um dólar. / Michele de Mello / Brasil de Fato

Circulação silenciosa

Desde 2019, estima-se que há mais dólares em espécie circulando na Venezuela do que bolívares soberanos, a moeda nacional do país. 

Sem uma centralização do Estado, a entrada da moeda estadunidense acontece num processo desordenado, criando algumas deformações. 

Pode parecer curioso que um país bloqueado tenha como reflexo quase que imediato do embargo o aumento da dependência da moeda estadunidense, mas esta é uma deformação que também aconteceu em Cuba, na década de 1990, durante o chamado Período Especial. 

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No entanto, na Venezuela, ao invés de criar uma segunda moeda nacional para conter a circulação dos "verdes", o governo decidiu liberar o uso de moedas estrangeiras para pagar alguns produtos e serviços, vendo uma oportunidade de reativar a economia em plena pandemia.

O governo bolivariano decidiu autorizar a cobrança da gasolina em dólares, assim como as taxas de emissão de documentos oficiais, como passaporte. 

Além disso, o Banco Central da Venezuela (BCV) adotou a redução da emissão do papel-moeda para conter a hiperinflação. De 2013 para 2020, houve uma diminuição de 91% dos bolívares soberanos em papel-moeda circulando no território venezuelano.

Para a economista Pasqualina Curcio, o maior controle da oferta de bolívares soberanos no mercado só serviu para reduzir o poder aquisitivo dos venezuelanos, já que a medida não veio aliada a um aumento real dos salários. 

"O objetivo do inimigo, mais que aumentar os preços, é gerar pobreza e fome, já que o aumento dos preços representa uma deterioração da renda nos lares. Assim atua essa arma da guerra econômica", analisa a economista e professora universitária venezuelana. 

Enquanto as políticas macroeconômicas ainda estão medindo sua efetividade, na prática, os venezuelanos vão encontrando formas de "resolver" a economia diária. 

"O que ganhamos é muito pouco, mas eu mantenho o negócio pra que pelo menos seja o suficiente para ter uma renda diária, que dê para pagar os salários e garantir o básico. E assim vamos, pouco a pouco, espero que logo tudo se estabilize. Realmente essa economia precisa mudar, porque já não se sustenta", conclui o comerciante Jesús Hernández. 
 

Edição: Raquel Setz