Paraná

Imunização

50% dos indígenas no Oeste do Paraná não foram vacinados contra a Covid-19

Fake news e grupos religiosos interferem na campanha de imunização

Francisco Beltrão (PR) |
Segunda dose começou a ser aplicada nesta semana; lideranças e entidades se mobilizam para garantir reforço - Reprodução

“Vamos tomar e receber essa vacina como se fosse a ditadura que mandou”, disse o Cacique Crídio Medina, da Tekohá Ywyraty Porã, lembrando de uma reunião que teve com a comunidade antes da aplicação da primeira dose, em janeiro, no município de Terra Roxa, no Oeste do Paraná. A orientação era justificada pelo medo disseminado pelos últimos anos da política bolsonarista aliado a fake news [notícias falsas] e ações de grupos religiosos fundamentalistas, que alegam a presença de chip e "marca da besta" nos imunizantes. Só nesta região, a meta de vacinação atingiu apenas metade do esperado na primeira etapa. Com a segunda, que começou nesta semana, o medo é que indígenas já vacinados recuem e acabem não recebendo a imunização completa, o que já vem acontecendo.

Segundo dados do Plano Estadual de Vacinação do Paraná, elaborado pela Secretaria Estadual de Saúde (Sesa) do Paraná, das 10.816 doses destinadas a indígenas, 77% foram aplicadas ainda em janeiro. O número indica que 2,4 mil indígenas ficaram de fora desta primeira etapa. A segunda, que começou nesta semana, imunizou, até a quarta-feira (24), 26% dessas populações.

Mas no Oeste do Paraná, onde está a aldeia de Crídio e outras 36 aldeias, a situação é mais crítica. Para essa região, que faz parte da 20ª Regional de Saúde de Toledo, das 1.608 doses destinadas aos indígenas, metade foi aplicada. O índice ficou em 50%, com 805 indígenas sem receber nenhuma dose do imunizante. Devido a um erro da Sesa, 200 doses aplicadas em Diamante do Oeste, que faz parte da regional de Toledo, foram atribuídas a outra região. A reportagem notificou a Sesa e obteve o dado correto.

De acordo com Crídio, que trabalha junto ao setor da saúde na aldeia, há esforço das lideranças para garantir a cobertura total da vacinação. Mas as lembranças dos anos de chumbo e as políticas anti indígenas que privam as comunidades da garantia da demarcação do território acendem o medo em grupos dentro das aldeias, que acreditam serem “cobaias” dessa vacina.

“Esses tempos atrás tinha ditadura militar no Brasil. Os brancos usavam estratégias para matar os indígenas. Foram envenenados muitas vezes. Foi colocado veneno nos açúcares e usados vários tipos de estratégias para matar os indígenas. E quando a gente faz uma denúncia, não tem justiça pra nós. Não tem como a gente falar que vai encontrar a justiça. Muitos indígenas foram mortos pelos brancos. Então muitos indígenas acham que foi criada essa injeção pra matar e pra atingir muitos”, pondera Crídio.

Apesar disso, o cacique orientou a comunidade para que aceitasse a vacina e pediu que fossem feitas fotos e filmagens. Ele também foi vacinado.

Interferência religiosa

Em Guaíra, na Tekohá Y’Hovy, a situação se repete e fica mais crítica com a chegada da segunda dose, na segunda-feira, dia 22. Ali, indígenas que já haviam recebido a primeira dose se negaram a tomar a segunda. As justificativas passam por fake news disseminadas em correntes de WhatsApp e por grupos religiosos que realizam cultos na aldeia.

De acordo com o cacique Ilson Soares, que foi vacinado, haviam doses suficientes para a comunidade desde a primeira etapa, mas assim como em Terra Roxa, a crença de que a vacina está sendo testada nos indígenas, as fake news de que ela pode matar em três dias ou a ideia de que elas carregam a "marca da besta" e um chip assustam indígenas fiéis que congregam com as religiões que avançaram nas comunidades.


O cacique Ilson Soares, da Tekohá Y’Hovy, recebeu as duas doses do imunizante / Divulgação

Até a quarta-feira, 23, só na 20ª Regional de Saúde do Paraná e entre os grupos indígenas, 93% das segundas doses ainda não tinham sido aplicadas.

Ilson diz que há um constante trabalho das lideranças para garantir a imunização. A campanha Vacina Parente, lançada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que tem por objetivo garantir a imunização dos povos originários, também foi reforçada. Ilson acredita que o quadro ainda será revertido, sobretudo diante do combate às fake news, grande barreira nesse momento para a imunização dos indígenas na região.

“Tem um trabalho bastante complicadinho, mas é um trabalho muito importante, que tem mudado o pensamento de muitas outras lideranças aqui do Oeste. Porque não só as comunidades, mas também as próprias lideranças estão se recusando a tomar a vacina. Mas pouco a pouco essas coisas estão mudando e espero que isso venha fazer muita diferença pra nós”, defende o cacique.

Em Diamante do Oeste, 10 famílias se recusaram a tomar a vacina na aldeia Anhetete.

MPF instaura procedimento

A Secretaria do Estado da Saúde (Sesa) e o Ministério Público Federal (MPF) disseram estar trabalhando junto às comunidades para reforçar a vacinação.

A Procuradoria da República no Município de Guaíra instaurou um procedimento administrativo específico de acompanhamento das vacinações para acompanhar a aplicação das doses nas aldeias de Terra Roxa e Guaíra.

Segundo a procuradoria, no dia 17 deste mês também foram realizadas reuniões com lideranças da aldeia Tekohá Araguaju e a participação da Coordenação Técnica Local da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Guaíra, “esclarecendo-se que apesar de voluntária, a adesão à vacinação pela população indígena de Guaíra e Terra Roxa é essencial para a proteção da comunidade, sendo a vacina segura e eficaz na proteção contra o coronavírus”.

A Sesa também disse que atua junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e reconhece que “as fake news estão diminuindo e a aderência da população vem crescendo”.

Edição: Lia Bianchini