Rio Grande do Sul

Pertencimento

Artigo | Mind The Gap (cuidado com o vão)

Sem munição contra o coronavírus, Brasil discute as armas de fogo

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"A verdade é que somos um “país-arquipélago” formado por ilhas que não se comunicam entre si, o que gera uma enorme dificuldade de pertencimento" - Reinhard Dietrich/WikiCommons

...Não preciso ser alguém /  Eu consigo viver sem / Armas para lutar /  Prosseguir desarmado / Suportar desarmado / Desarmado, sem armas para lutar

(Armas para lutar - Titãs )

O Brasil está desarmado contra o coronavírus. Em meio a este contexto, o governo federal editou quatro decretos facilitando o porte e a posse de armas no país.

Que tipo de armas o Brasil precisa agora? Ao fazer isso, feriu dois preceitos constitucionais: usurpou poderes do Congresso Nacional e atacou o direito à preservação da vida. Não entrarei no mérito da questão. Não me considero com expertise sobre o tema, porém é preocupante a possibilidade de acidentes com crianças, a facilitação de crimes passionais, os assassinatos, principalmente o feminicídio e, em especial, a facilitação do suicídio, que já é um drama epidemiológico no Brasil.

Mind The Gap é uma advertência para os passageiros, pois, por vezes, há um grande vão entre a porta e a plataforma do metrô. O slogan foi introduzido em 1969 pelo Metrô de Londres. Ficou famoso em todo mundo. Mind significa mente, razão, juízo, ter cuidado, atenção, observar, ter em mente, e Gap traduz-se por vão, lacuna, vazio, espaço, diferença. 

A frase veio à tona diante da última entrevista concedida pelo ex-presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, que vestia uma camiseta com os dizeres. O gesto foi entendido como uma mensagem. O vão que separa o negacionismo e a realidade da covid-19 no Brasil é a própria doença e sua letalidade.

O que toca meu coração, há muito, não parece encontrar eco na sociedade anestesiada, a não ser em pequenos segmentos. Falo também como uma filha cuja mãe, de 76 anos, encontra-se hospitalizada em uma UTI com covid-19. Não sei o que ocorrerá, porém afirmo que não estou preparada para perdê-la. Algum dia estarei? Alguém, de fato, está? 

Vivenciei a dor de não poder estar ao lado dela, de lhe alcançar um copo de água, alimento, carinho, enfim, de oferecer minha presença, outro aspecto muito cruel dessa doença. Restou-me o telefone. Consegui dizer, com enorme admiração, o quanto é valente e guerreira.

Pude sentir na pele a dificuldade e a angústia frente ao medo de não conseguir um leito. Os sistemas de saúde, público e privado, totalmente colapsados, derrubados pelo vírus implacável. Quando não há leito, não importa se você tem dinheiro, convênio ou não. A doença, neste sentido, é democrática .

Encontrei colegas com extraordinária capacidade empática, de várias especialidades: intensivista, cardiologista, psiquiatras, clínico geral. Alguns estavam visivelmente exaustos e apesar disso tiveram tempo de confortar, de conversar, mesmo durante a madrugada, e ajudar a família a decidir pelo atendimento humanizado e técnico (qualidades difíceis de se encontrar juntas) do Dr. Tiago Simon e pelo serviço de excelência do Hospital das Clínicas de Passo Fundo.

A dor é um enorme propulsor. Porém, minha dor pessoal é a dor vivenciada por milhares de brasileiros. É por eles também que escrevo hoje. E escrevo com a liberdade de quem não tem compromissos políticos partidários ou vínculos ideológicos. Escrevo como médica, profissional da saúde, sobretudo como pessoa e como cidadã brasileira. 

Seria possível relativizar mais a importância da vida, banalizar ainda mais a morte?

“Morreram. E daí ?”
“Não sou coveiro”

Não interessar-se pela compra de vacinas, menosprezar a pandemia, desfazer das medidas sanitárias, criticar governadores e prefeitos que propuseram medidas mais duras de enfrentamento. E o mais grave de tudo: pelo exemplo deletério das inúmeras aglomerações que promove, a possibilidade de arrastar para a morte milhares de brasileiros 

A pergunta que fica é: o que ocorre na sociedade? Por que o tecido democrático, esgarçado, não reage? Uma parcela menor da população, desprovida da liberdade que o verdadeiro pensar confere, é incapaz de qualquer questionamento crítico. Impossibilitados de romper os vínculos ideológicos aos quais estão acorrentados, não conseguem caminhar em direção ao longo e doloroso processo de aquisição do conhecimento. São prisioneiros do próprio medo, cúmplices de uma marcha macabra espalhada pelo país, que tem por base o negacionismo científico instituído como política de Estado.

Há uma porção significativa da sociedade, a maioria, que assiste ao horror atônita, consumindo toda sua energia em estratégias de sobrevivência física, emocional e financeira, em um cenário triste de guerra. Não consegue força e foco para reagir.

Há uma casta que simplesmente não se importa. Nunca vai além do seu mundo de conforto e privilégios para dirigir o olhar ao “Brasil profundo”. Uma elite econômica atrasada e autofágica. E há silêncio também entre os poderes Legislativo e Judiciário e das entidades de classe.

A verdade é que somos um “país-arquipélago” formado por ilhas que não se comunicam entre si, o que gera uma enorme dificuldade de pertencimento. São vários “brasis” que convivem em um mesmo espaço, mas não constroem uma relação orgânica. Um país que combina diferentes momentos históricos na mesma conjuntura. A história move-se em diferentes sentidos e sentidos contrários, sendo assim não há um sentido de unidade.

Como construir o sentimento de pertencimento?

Vivemos uma confluência de fatores negativos: a escassez de vacinas e as novas variantes do coronavírus.

Outra estratégia obviamente diversionista é o ataque à imprensa livre. A essência desse ataque é o extremismo reacionário e seu alvo um dos pilares da nossa democracia. É preciso ter memória e aprender com a história. Reconhecer que o Brasil é um país com fortes tendências autoritárias que perpassam os séculos - desde o Brasil Império - e vive, no momento, um populismo com viés autoritário que em nada se relaciona à direita civilizada e ao conservadorismo, capazes de dialogar com os mais diversos campos da democracia.

O fato é que não temos vacinas suficientes, nem campanhas de vacinação, nem estratégias de enfrentamento ao coronavírus e suas variantes. Nem política econômica para fazer frente à crise social. Temos pão e circo. E com vacinas a conta-gotas, comenta-se o ócio do presidente com seu pé de pato, seu snorkel, na praia. Dissociado do real problema que o aflige, o Brasil mergulha de cabeça nos atos praticados pelo deputado Daniel Silveira.

A discussão sobre os limites da liberdade de expressão, até onde vai a imunidade parlamentar e os limites para atuação do Supremo Tribunal Federal é tentadora. E também sobre o conceito de prisão em flagrante e o que se considera ameaça a um poder constitucional. A crítica embasada é uma ofensa? Percebe-se muita confusão acerca dessas questões e a utilização do tema intencionalmente deslocado no tempo e da realidade do país, com seus mais de 250 mil mortos.

Finalizo essa reflexão com uma música recentemente composta pelo cantor Bono Vox, da banda Irlandesa U2, dedicada a esse momento de enfrentamento da pandemia: “Cante como um ato de resistência / Cante, apesar de seu coração estar derrotado / Cante, quando você canta não há distâncias / Então deixe seu amor ser conhecido” (Let your love be Known - Bono Vox).

Eu canto para minha mãe que me embalou com cantigas de ninar, que hoje embalam meus sonhos. Inclusive, sonho com um país justo, democrático, sem corrupção, com um povo verdadeiramente livre para pensar. Os sonhos, às vezes, são utopias necessárias .

* Gilmara Bueno é médica psiquiatra, autora de “O Impacto da COVID-19: O que aprender com a Pandemia?”, em parceria com Elisa Fasolin Neto.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Nota do editor: Antes da publicação deste artigo, a redação do Brasil de Fato RS foi informada, infelizmente, do falecimento da mãe de Gilmara. Manifestamos nossa mais profunda solidariedade à família e amigos, bem como a todas as famílias dos mais de 259 mil brasileiros e brasileiras que perderam a vida em decorrência da covid-19. Muitas dessas mortes poderiam ser evitadas, não fosse o desprezo dos governantes pela ciência e pela vida da população.


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Edição: Marcelo Ferreira