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Artigo | Paralisação dos motoristas de aplicativos expõe os efeitos da precarização

É preciso reivindicar melhores condições salariais e trabalhistas sem ignorar a necessidade do reconhecimento de vínculo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
A pressão neste sentido deve vir acompanhada da ideia de que ter mais direitos é o que fundamenta um projeto de país - Reprodução

Por Eduardo J. R. Pereira*

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Na tarde da última sexta-feira, 26 de fevereiro, os motoristas de aplicativo paralisaram seus trabalhos na cidade de São Paulo, realizando manifestações em diversos pontos de concentração e em carreatas pelas ruas da capital paulista. Os locais de concentração foram articulados e divulgados em grupos e perfis nas redes sociais desses trabalhadores, que se dirigiram para cinco pontos de destino: os prédios dos escritórios da Uber e da 99, em São Paulo, e os três bolsões do Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos.

Não houve nenhuma notícia sobre a paralisação dos motoristas de aplicativo vinculada aos meios de comunicação tradicionais, que tampouco estiveram presentes nos locais de manifestação. Numa rápida busca pela internet, é possível identificar ações do mesmo tipo articuladas por essa categoria durante a mesma semana em outras localidades do país, tais como na capital e no interior pernambucano e no interior paulista e mineiro.

Destaca-se que a paralização paulistana foi articulada pelo o Sindicato dos Trabalhadores com Aplicativos de Transportes Terrestres Intermunicipal do Estado de São Paulo, o STATTESP, parceiro da Força Sindical e de atuação notavelmente recente. Além do sindicato, o material de divulgação também contava com a identificação de outros seis grupos: os Motoristasdeapps, 66 de Favela, Alto Tietê, Motor ABC, Cooperapps e Baixada Santista — nenhum com a mesma pretensão do STATTESP de ser algo além de um grupo que realiza troca de informações, seja presencial ou virtualmente.

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O STATTESP tem como lema “Unidos somos mais fortes”, o que aponta certo objetivo de organizar essa categoria altamente precarizada e cada vez mais crescente no Brasil. Essa organização, que age politicamente por meio de denúncias no Ministério Público, com relação aos abusos cometidos pelas empresas-aplicativo aos seus trabalhadores, oferece um conjunto de serviços prestados aos motoristas filiados. As manifestações na sexta-feira, 26, conforme dito por um dos dirigentes sindicais, foram as primeiras ações do STATTESP diretamente contrárias às empresas Uber e 99.

Sob o mote “É hora de reagir!”, as pautas da paralisação eram: 1) fim da Uber Promo, da 99 Poupa e da 99 Compartilha; 2) mais segurança; 3) reajuste das tarifas; 4) seguro de vida; 5) auxílio funeral; 6) cadastro universal; 7) fim do desligamento; e 8) apoio jurídico. É possível notar que as pautas do movimento dizem respeito às políticas das empresas-aplicativo, e não ao acesso aos direitos sociais e trabalhistas mais amplos ou específicos para a categoria, colocando, portanto, a melhoria dos salários e das condições de trabalho não ao Estado brasileiro, por meio do necessário reconhecimento do vínculo trabalhista, mas na responsabilidade direta dessas empresas, apontando a manutenção da forma de (não) contratação.

Chama atenção o fato de que a manifestação não contava com os símbolos tradicionais dos atos promovidos pela esquerda. A ausência de bandeiras e de lideranças de partidos políticos, movimentos sociais e centrais sindicais é o primeiro impacto. Os cartazes e as faixas são substituídos pelos escritos nos vidros e na lataria dos veículos, instrumentos de trabalho alugados ou próprios.

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Em toda direção eram notados os aparelhos celulares — todos, obviamente, com o aplicativo desativado de modo temporária —, que ou estavam erguidos, num simbólico gesto de controle desses trabalhadores sobre o tempo paralisado, ou tirando fotos e gravando vídeos, que serão compartilhados em seus perfis ou grupos de redes sociais para explicar o motivo da manifestação e também engajar outros colegas na ação paredista.

Além de todas essas características, a falta da agitação por políticas de emprego, por “Fora Bolsonaro” e “Fora Dória”, ou palavras de ordem e escritos que remetem ao contexto da pandemia do novo coronavírus, como a defesa do SUS e a vacinação para todas e todos, demonstram como as pautas da própria categoria tomam uma única dimensão de luta e identidade, que ao passo em que pode os fortalecer, os isola.

Destaca-se também que as horas paradas significam perda salarial, o que quer dizer que muitos trabalhadores irão compensar o tempo da manifestação, isto é, as horas paradas contra as empresas-aplicativo, trabalhando em jornadas excessivas nos próximos dias para conseguirem obter seus rendimentos necessários — através, evidentemente, do trabalho nessas mesmas empresas-aplicativo.

O impacto no lucro dessas empresas é totalmente nulo, e só pode ser atingido por meio de um movimento massivo, que inclua todos os trabalhadores da categoria — pois ao não aceitarem corridas, por estarem desativados temporariamente, os algoritmos destinarão a viagem solicitada por um passageiro para qualquer outro trabalhador que estiver disponível para o serviço.

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Apenas duas das pautas da manifestação se destacaram, fosse pelas palavras de ordem proferidas pelos trabalhadores engajados e pelo discurso do presidente do STATTESP, ou pelos escritos nos veículos: o fim das promoções da Uber e da 99 e o reajuste das tarifas das empresas-aplicativo. Ambas as pautas se vinculam diretamente à busca por melhores rendimentos salariais, que diante da forma precária de obtenção, se associam às condições de trabalho.

As promoções da Uber e da 99, apesar de deterem particularidades, apresentam como semelhança a diminuição do valor da corrida pago pelo passageiro, a manutenção da taxa repassada às empresas-aplicativo e a diminuição, por consequência, do valor ganho pelo motorista ao final da corrida. Ou seja, o valor pago pelo serviço promocional não afeta o lucro da empresa-aplicativo que o promove, mas do motorista que realiza esse trabalho — que pode, por sua vez, não o realizar, mas que aceita essa condição por necessidade e/ou por receio de ser desligado da plataforma.

Há de se ressaltar que o desligamento da plataforma é uma decisão unilateral e absurdamente pautada pelo sigilo dos algoritmos das empresas-aplicativo, que podem demitir seus trabalhadores do dia para noite, sem precisar justificar tal decisão.

O reajuste das tarifas está totalmente vinculado ao mesmo objetivo que se apresenta nas promoções da Uber e da 99 e aos seus efeitos nos rendimentos dos motoristas: é o lucro abusivo das empresas acima de tudo, possibilitado pela desregulação e pela precarização, sob o véu do trabalho autônomo, que atinge a todos. As taxas das corridas, repassadas aos cofres dessas empresas, não consideram, ou melhor, não buscam considerar, o aumento do custo de vida e do combustível pago pelos trabalhadores. Para compensar o baixo rendimento, muitas vezes obtido unicamente por essa forma de ocupação, os motoristas por aplicativo são obrigados a estenderem sua jornada diária — excedendo, por vezes, a de um trabalhador com carteira de trabalho assinada.

Quando falamos dos trabalhadores por aplicativo de modo geral, e dos motoristas em específico, para além das já tão conhecidas características da precarização –– como as longas jornadas diárias e os baixos rendimentos, a insegurança e os riscos, as políticas de controle por parte das plataformas e os algoritmos etc. ––, aparecem pelo menos três questões principais que envolvem o presente e o futuro desses trabalhadores.

A primeira questão diz respeito ao vínculo empregatício entre trabalhadores e empresas-aplicativo. Neste sentido, questiona-se: ao se enquadrarem no perfil desejado por essas empresas e aceitarem seus termos de conduta e condições de uso, cumprirem suas metas e objetivos, que, se não realizados, poderão acarretar no desligamento de suas funções, esses trabalhadores não teriam vínculo, diante da evidente subordinação do trabalho?

Decorrente dessa primeira indagação, a segunda questão aponta: ao terem vínculo de emprego com as empresas-aplicativo, sob a evidente subordinação, não deveria ser concedido aos trabalhadores por aplicativo o acesso aos direitos sociais e trabalhistas?

A terceira questão, de resposta não consensual e ainda pouco desenvolvida por pesquisadores da área e pelo movimento sindical de modo geral, é: seria a Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, a forma da obtenção desses direitos?

As características da paralisação, algumas delas relacionadas às contradições existentes na própria condição do trabalho por aplicativo, bem como as pautas reivindicadas, apontam alguns desafios a serem considerados pela esquerda e movimentos populares e sindical brasileiros, diante da necessidade de elaborar formas de organização política para esses trabalhadores, que não estão inseridos na estrutura corporativa do sindicalismo brasileiro, que se ocupam em longas e flexíveis jornadas de trabalho, que estão espalhados em diversos territórios e sob constante deslocamento pelas grandes e pequenas cidades.

O que poderá ou não ser diagnosticado como tendência, diante de novos movimentos desse tipo, é se as reivindicações mais latentes, ou mesmo exclusivas, se referem ao rendimento salarial e consequentemente às condições trabalhistas, e não ao acesso formal aos direitos; se o que se busca, portanto, são algumas parcas mudanças nas políticas das empresas-aplicativo, ou se é o reconhecimento do vínculo de emprego por parte da legislação brasileira.

A ausência de pautas relacionadas ao acesso aos direitos sociais e trabalhistas via CLT ou o reconhecimento do vínculo dos trabalhadores pelas empresas-aplicativo, por meio da intervenção do Estado, não podem ser vistas como elementos de pouca importância. A pressão neste sentido deve vir acompanhada da ideia de que ter mais direitos é o que fundamenta um projeto de país, e que o “fazer mais e pagar menos” da 99, e o “motorista particular” da Uber, carregam consigo as mazelas do capitalismo de plataforma.


*Eduardo J. R. Pereira é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (PPGCP/IFCH/Unicamp). É jornalista, escritor e militante do Levante Popular da Juventude e da Consulta Popular.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante