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Um novo desafio da geopolítica: a construção do gasoduto europeu Nord Stream 2

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É provável que o gasoduto de 2.360 quilômetros de extensão, o maior da Europa, seja concluído e comece a operar. O que se especula é o preço político e econômico a pagar - AFP
Projeto tornará possível uma reaproximação histórica direta entre Rússia e Alemanha

Por Martonio Mont'Alverne*

Egon Bahr foi Ministro das Relações Exteriores da Alemanha durante o governo de Willy Brandt, entre 1969 e 1974. Faleceu em agosto de 2015, aos 93 anos de idade.

Já nonagenário, Bahr participava do debate sobre política externa da Europa. Numa de suas manifestações, explicitou o que julgava ser decisivo para a política externa europeia: emancipar-se dos Estados Unidos e construir alternativas. Eis uma disputa que não poderia ser mais atual.

Alemanha, França e Rússia estão na parte final da construção dos 2.360 quilômetros de extensão do maior gasoduto europeu que ligará Rússia a Alemanha, com passagem pelos países do Mar Báltico, além de Finlândia, Suécia e Dinamarca.

Os Estados Unidos já aplicaram sanções contra empresas que de alguma maneira participam do projeto. Em fevereiro de 2021, senadores americanos recomendaram que, se concluído, o Nord Stream 2 não deve entrar em operação.

Os senadores Jeane Shaheen (DEM) e Jim Risch (REP) deixaram claro que a Alemanha é mais que um grande aliado estratégico para Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e dos Estados Unidos: o que falta é parar o Nord Stream 2.

Como sempre, constata-se que Democratas e Republicanos quase não possuem divergências quando se trata da defesa dos interesses econômicos e geopolíticos de seu país.

O caso do envenenamento do político Alexei Navalny aumentou a pressão sobre a Alemanha para que cancele a cooperação. Até o momento, o governo de Angela Merkel tem mantido seu compromisso com o projeto, sua finalização e operação.

Pressão interna contra o Nord Stream 2 vem também da grande imprensa alemã, cuja verdadeira "Russophobia" não cansa de ser reclamada pelo Kremlin. O tratamento que o anúncio da vacina Sputnik V recebeu a imprensa alemã – e europeia – não poderia ser mais parcial. Até hoje, a vacina não foi autorizada nos países do bloco.

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É evidente que se trata de um empreendimento com forte sentido geopolítico, além de economicamente vultuoso. O projeto tornará possível uma reaproximação histórica direta entre Rússia e Alemanha, praticamente inédita desde 1945, e pode desencadear uma nova relação entre Europa e Rússia; tudo que os Estados Unidos querem evitar.

O adiamento de novas sanções americanas, que foi anunciado em 5 de março, por outro lado, começa a dar a entender que os próprios americanos sentiram que devem insistir nas suas posições, mas por outros caminhos, uma vez que empresas americanas também podem ser retaliadas pela União Europeia.

Mais que empresas alemãs e russas, estão envolvidas empresas e governos da França, da Itália e da Suíça. Portanto, o problema é mais complexo do que simplesmente mandar parar um investimento de quase dez anos, de uso de alta tecnologia, sem contar com o benefício econômico e social na forma de empregos e desenvolvimento econômico.

É provável que o Nord Stream 2 seja concluído e comece a operar. O que se especula é qual o preço a pagar. Por ironia da história, quem poderá arcar com danos menos significativos será exatamente aquele que a diplomacia americana mais esperava atingir: a Rússia.

O volume financeiro, o esforço político para que se alcançasse governos e empresas europeias dispostas a tal investimento, as expectativas para o transporte e comercialização do gás a preço melhores e o fato de que as reclamações contra o projeto, como aquelas da Dinamarca, da Suécia e dos Estados Unidos, serem mais de ordem puramente política do que baseadas no Direito Internacional e tratados sobre o uso dos mares, ajudam a convencer a opinião pública europeia de que tudo não passa da tentativa hegemônica da OTAN e dos Estados Unidos contra a soberania do bloco europeu.

Na remota possibilidade de não se concluir o gasoduto, os governos europeus terão que arcar, além de pesadas reparação de danos a investidores privados, com outro planejamento para sua necessidade de suprimento de gás. Sem dúvida que os custos econômico e político são mais elevados, em todos os sentidos, para o bloco europeu do que para a Rússia.

Esse complexo conjunto de fatos serve de alerta para todos. Especialmente para o Brasil, que vive um momento de humilhação sem precedentes quanto à sua política externa e quanto à sua imagem no exterior: todos têm que ser ativos e altivos para defesa de sua soberania econômica. Caso contrário, não há que se falar em autonomia tecnológica, desenvolvimento econômico, tampouco em bem-estar social de um povo.

* Martonio Mont'Alverne Barreto Lima é professor titular da Universidade de Fortaleza, procurador do Município de Fortaleza e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Poliana Dallabrida