Coluna

As engrenagens subterrâneas do Direito patriarcal não descansam e não nos libertarão

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Em novembro, assistimos, numa gravação, ao brutal julgamento de Mariana Ferrer. Sim, naquela audiência, não era o estuprador, André de Camargo Aranha, que estava sendo julgado, e sim a vítima - Unsplash
O Brasil ocupa o 4º lugar no mundo no ranking dos casamentos infantis

Por Lua Marina Moreira*

 

Durante o ano de 2020, em meio à pandemia da covid-19, diante do agravamento de violências de gênero, do feminicídio, e do aprofundamento das contradições vividas pelas mulheres, principalmente no espaço doméstico, alguns episódios chamaram atenção. Não apenas pela sua gravidade, mas sobretudo porque expuseram o elemento institucional da violência, a natureza patriarcal do Estado e do Direito.

Em agosto, uma menina de 10 anos, grávida em decorrência dos abusos de um tio, foi perseguida e atacada por um grupo de fanáticos que tentavam impedir a realização do seu direito a um aborto legal.

:: Aborto legal de criança de 10 anos ocorre em segurança após a expulsão de extremistas ::

Houve a colaboração de servidores públicos na divulgação de suas informações pessoais, e a equipe médica do seu estado, o Espírito Santo, recusou-se a realizar o procedimento, apesar da ordem judicial.

As instituições não se mobilizaram para proteger a criança violentada, pelo contrário, os mecanismos do Estado foram ativados para violenta-la mais uma vez.

Em novembro, assistimos, em uma gravação, ao brutal julgamento de Mariana Ferrer. Sim, naquela audiência, não era o estuprador, André de Camargo Aranha, que estava sendo julgado, e sim a vítima, a jovem mulher aos prantos na tela.

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O advogado do réu a agride, utilizando em sua fala, os recursos da cultura do estupro que ele sabe serem favoráveis ao seu cliente. E o que mais assusta é o silêncio indiferente com que juiz e promotor compactuam desse pacto institucional patriarcal.

Ao final, a sentença confirma o que o advogado, seu cliente e todas nós já sabíamos: o Estado não legitima as nossas narrativas de violência e não nos protege.

Em fevereiro deste ano, acompanhando reuniões da articulação nacional do 8 de março, conheço um grupo de mulheres que luta pela revogação da Lei de Alienação Parental (Lei 12.318/2010). Minha surpresa dura segundos, porque é óbvio que essa lei é um instrumento de violência contra as mulheres mães, após a dissolução do casamento.

Pesquiso brevemente e descubro diversos artigos de advogadas e advogados de família, inclusive do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito das Famílias) que são contrários à revogação, todos com os mesmos argumentos baseados na teoria do psiquiatra infantil Richard Gardner, a qual jamais foi reconhecida pelos seus pares médicos, por psicólogos, pela OMS (Organização Mundial de Saúde) ou qualquer ramo da ciência.

Poucos resultados da pesquisa dão notícia de que tramita no Congresso Nacional, o PL 6371/19, buscando a revogação total da lei. Há ainda a ADI 6273 tramitando no STF, em que associações de mães pleiteiam a declaração de inconstitucionalidade da norma.

Em resumo, as entidades médicas e científicas rejeitam a teoria de Gardner, e a lei tem sido utilizada no Brasil como mecanismo de chantagem e pressão por pais abusadores, quando as mães denunciam em juízo, situações de maus tratos e abusos sexuais que aqueles cometem contra seus filhos.

Em algumas situações, a guarda foi revertida em favor dos abusadores, e há notícias de mães que se suicidaram, como ocorreu também em outros países, como no México, na Escócia e na Catalunha.

Mais uma descoberta. Numa banca de TCC, a aluna apresenta um trabalho sobre a “insuspeita” Lei de Planejamento Familiar (Lei nº 9.263/96). A pesquisa identificou que embora a lei seja um avanço, uma vez que remove a proibição da esterilização voluntária permanente, o seu artigo 10 impõe restrições para que a esterilização ocorra, como idade mínima, quantidade de filhos, proibição de realização nos períodos de parto ou aborto, prazo mínimo de espera e a exigência de autorização expressa do cônjuge.

Trata-se de um dispositivo de maternidade compulsória, por meio do qual o Estado concede a outrem – o marido – o direito de tomar decisões sobre o corpo das mulheres, e impõe obstáculos à mulher, com o objetivo de demovê-la de sua legítima decisão de não ser mãe.

Me lembro do artigo 1566 do Código Civil de 2002, sobre os deveres do casamento, que não mais menciona o “dever de coabitação”, expressão de nítida conotação sexual, porém, cita a “vida em comum, no domicílio conjugal”. Tal obrigação legitima uma violência infelizmente muito comum, o estupro marital.

Outro artigo do CC/02, o art. 1520, revogado em 2019, possuía a seguinte redação: “Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil (art. 1517), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez”.

Este artigo precisava ser interpretado em consonância com outros dispositivos do Código Penal, também já revogados, que previam a extinção da punibilidade nos casos do então estupro presumido (art. 107, incs. VII e VIII, do Código Penal), ou seja, na hipótese de alguém ter relação sexual com uma criança ou adolescente menor de 14 anos, e depois se casar com ela. Tais dispositivos permitiam ao estuprador escapar ao cumprimento da pena casando-se com a vítima, mesmo que ela fosse menor de 14 anos de idade. Destaco que o Brasil ocupa o 4º lugar no mundo, no ranking dos casamentos infantis.

E eis que poucos dias após o 8 de março, o STF firmou, por unanimidade, que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. O julgamento da ADI ocorreu em 12 de março de 2021. O que significa que esta tese seguia sendo levantada por advogados de defesa dos réus em casos de feminicídio, tal qual ocorreu com Ângela Diniz em 1979!

Ao longo de décadas de luta das mulheres, algumas conquistas foram obtidas com a positivação de direitos, como o divórcio, com a criminalização de condutas, como o feminicídio, e a proteção obtida com os importantes instrumentos da Lei Maria da Penha.

Essas são as contradições no campo da institucionalidade, que exploramos em nossa luta, ao exigirmos justiça pelas vítimas da violência, e pelos pedaços de nossa dignidade que o patriarcado nos toma. Porém, as pequenas vitórias não modificam o caráter patriarcal do Estado e do Direito, que cria leis para exercer controle sobre nossos corpos, não admite nosso exercício de autonomia e escolha, revitimiza as mulheres que denunciam violências ao desacreditá-las e culpá-las.

Ao passo que nos concede o direito ao divórcio, para que possamos romper as relações pautadas na violência e no abuso – que são a regra numa sociedade em que as relações entre homens e mulheres são profundamente desiguais –, utiliza nossos filhos como instrumento de desestabilização e vingança. Existem instrumentos de proteção, como medidas protetivas, mas estamos assistindo ao desmonte da rede de atendimento às vítimas pelo desinvestimento estatal.

Ao passo que a pandemia avança, as políticas públicas de saúde da mulher retrocedem, e o Ministério da Saúde bolsonarista aproveita para impor retrocessos em nossos direitos reprodutivos. As leis que dizem ser a nosso favor, por vezes, funcionam como uma cortina de fumaça, para que continuemos rodando em círculos. A engrenagem gira. Quebremos a engrenagem.

 

*Lua Marina Moreira, feminista, militante, advogada, mestra em ciências jurídicas, pesquisadora e professora de Filosofia e Teoria do Direito.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante