Ciúme não é amor

No BBB e na vida: relação abusiva nasce disfarçada de cuidado, alerta psicanalista

Tipo de relação gera um ciclo no qual o abusador resolve as violências com a companheira por meio de atos de romantismo

Belém (PA) |

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Reconhecer-se em uma relação abusiva é o primeiro passo para expressar essa situação e buscar ajuda - Créditos: Paulo Pinto/ AGPT

A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que uma a cada três mulheres  – em todo o mundo – sofreram violência física e/ou sexual por parte do companheiro ou de terceiros durante a vida. 

Identificar relacionamentos abusivos têm sido um desafio, uma vez que dentro dessas relações, as mulheres dificilmente conseguem reconhecer no parceiro um abusador.

Com o envolvimento da atriz Carla Diaz com o instrutor de crossfit Arthur Picoli, dentro do reality show da Rede Globo Big Brother Brasil, tem-se discutido na internet se o relacionamento entre os dois é ou não abusivo.

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Convida pelo Brasil de Fato para falar sobre o tema, a psicóloga e psicanalista Carolina Miralha, mestranda em psicanálise pela Universidad Kennedy, de Buenos Aires, e membro da Associação La Cause des Bébés, na França, explica que o relacionamento abusivo é complexo, por se tratar de uma teia que vai envolvendo a vítima.

No entanto, ela alerta para um indício: o fato de se "resolver" problemas do casal com atos grandiosos de romantismo.

"Se um desentendimento precisa ser resolvido, e o parceiro surge com alguma surpresa para tapar aquela situação, para silenciar o outro, é possível dizer que ali há relacionamento abusivo, porque o relacionamento abusivo é um ciclo, uma tensão, que começa com esse excesso de cuidado, zelo e até ciúme. Depois, vem a violência. Uma vez cometida, vem o remorso do abusador, com falas de que "não queria ter feito isso". Ou seja, quando se começa a perceber grosserias, no sentido de um ataque verbal, isso já é relacionamento abusivo", explica a especialista.

Leia, abaixo, a entrevista.


Brasil de Fato: Existem elementos que caracterizem um relacionamento abusivo? 


Carolina Miralha: Existe sim. É aquele relacionamento disfarçado de um cuidado excessivo e que vai passando despercebido. Podemos dizer que a vítima vai ficando à mercê desse abuso, entrando em um lugar de dívida e culpa. É quase como se fosse um poder excessivo que o outro assume com relação à vítima.

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O relacionamento abusivo é algo mais praticado pelos homens? 

A maioria dos registros são de relacionamentos abusivos sofridos por mulheres. No entanto, é preciso lembrar que acontecem em relações que não dependem de gêneros, podendo, inclusive, acontecer em relação familiares.

Então, todos estão à mercê de relacionamentos abusivos, mas os registros mostram que são mais praticados de homens contra mulheres. 

Quais prejuízos um relacionamento abusivo pode causar com relação à psique e ao comportamento das vítimas? Existem formas de se proteger desse risco?

Existem vários indícios de que uma pessoa está chegando ao limite na questão do abuso. A pessoa começa apresentar, inclusive, problemas de saúde associados à ansiedade, insônia, depressão, crise de pânico e sintomas físicos, como formigamentos, câimbras, compulsão alimentar e muitas questões relacionadas à autoestima.

Essas pessoas começam a sintomatizar o físico, e isso é um grande indício de que precisa de ajuda.

Muitas vezes, a gente espera que aconteça um feminicídio para que algo tenha a nossa atenção. Acredito que precisamos olhar um pouco mais para a vida, principalmente, se a gente falar no sentido da mulher, já que os registros nos indicam mais o abuso neste gênero.

Precisamos nos atentar sem esperar que essas tragédias aconteçam e escancarem aquilo que a gente minimiza, porque a tendência do sujeito é esperar que só uma agressão física leve a uma denúncia.

mas o abuso nasce com uma forma de envolvimento, como se fosse uma teia imaginária em que a vítima não se vê sendo entrelaçado. 

Logo, quando os sintomas físicos ou emocionais aparecem, isso já é um grande indício para procurar ajuda, que pode ser a terapia, ou a Central de Atendimento à Mulher, pelo número 180, que funciona 7 dias por semana, durante 24h e também locais de atendimento psicológico.

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Existe um padrão no comportamento das pessoas que estão em relacionamento abusivo ou um tipo de personalidade mais suscetível a ele? 

Existem questões que nos colocam mais vulneráveis em algumas situações. No entanto, a coisa é tão grandiosa que a Organização Mundial de Saúde (OMS) se pronuncia dizendo que uma em cada três mulheres vai sofrer algum tipo de violência na vida.

É um número muito alto para que a gente possa pensar até mesmo em um padrão. O abusador, por outro lado, segue um padrão. Começa com um "excesso de amor", de cuidado e, muitas vezes – vale dizer que não se pode generalizar, é claro –, a gente precisa pensar nas nossas relações iniciais de cuidado.

Em relação à vítima, formos pensar em uma questão de gênero, pela via das mulheres, são aquelas que confundem migalha com banquete, em que aquele pouco de afeto que lhes é dado se torna muito, e essa teia vai ficando cada vez maior e vai capturando, literalmente, para esse tipo de relacionamento.

O que motivou a entrevista foi a questão do relacionamento entre a atriz Carla Diaz e o Arthur, no Big Brother Brasil (BBB21). Há muitos comentários se o relacionamento entre os dois é ou não abusivo, além disso: existe possibilidade de um relacionamento que é abusivo deixar de ser abusivo ou uma vez abusivo sempre abusivo?

Respondendo primeiro a última pergunta: é difícil, mas não é impossível. Uma das propostas quando você começa a perceber um relacionamento abusivo é conversar com o abusador, se isso for possível nessa relação.

No entanto, confesso que é muito difícil, até porque é difícil a vítima entender que está em um relacionamento abusivo, que é quando algo já parte para a via do excesso.

Com relação ao caso específico do Big Brother, a gente precisa lembrar que eles vivem ali dentro é um recorte, porque eles estão vivendo em um mundo paralelo.

Contudo, se existe alguma situação de desentendimento em que ele surge com um ato de romantismo que tem como objetivo final silenciar o outro, a gente começa a ver que ali há um relacionamento abusivo.

O relacionamento abusivo é um ciclo em que a tensão vai aumentando. Ele começa esse excesso de cuidado, de zelo, de ciúme, até vir propriamente a violência, quer seja física, psicológica ou moral.

Depois que a violência é cometida, vem o remorso desse abusador com falas como "Eu não queria ter feito isso; Eu jamais faria isso; Foi você que fez eu praticar isso dessa forma, porque eu não sou assim". 


Há elementos que possam auxiliar alguém que esteja nos lendo a ter a percepção de que pode estar sendo vítima do abuso?

Primeiro, é preciso se reconhecer em um relacionamento abusivo. Enquanto eu não reconheço, isso é difícil. Afinal, só se precisa de ajuda quando se tem um problema. Se eu não tenho problema, eu não tenho ajuda.

Esse reconhecimento, de repente, pode vir de conversas com pessoas que passam ou passaram por situações semelhantes as que você está ou esteve, ou de grupos de apoio que, inclusive, puxam para a questão de gênero. Há um chamado "Mulheres que amam demais", em que você consegue escutar e compartilhar experiências semelhantes.

A partir disso, é possível procurar ajuda. Caso não consiga diretamente com familiares ou amigos próximos, pode-se conseguir com alguém que te escute e consiga pontuar que sim, você está vivendo relação abusiva.

Edição: Vinícius Segalla