Rio Grande do Sul

Para especialistas, uma possível flexibilização neste momento é perigosa e inoportuna

Governador Eduardo Leite anunciou retomada da cogestão, o que significa que municípios poderão reabrir nesta semana

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
A flexibilização vai prorrogar o status de saturação do sistema de saúde - Silvio Avila/HCPA

Na última semana, o governador do estado do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), sinalizou a retomada da cogestão no estado, a partir desta semana. Com isso, abre-se permissão para que as prefeituras adotem restrições de bandeira vermelha mesmo estando em bandeira preta. O Executivo estadual alega para tal medida a falta de “fôlego econômico” e redução da demanda hospitalar. Contudo, desde o início de março, mês que até o momento é o mais mortal para pacientes com covid-19 no estado, os leitos de tratamento intensivo estão superlotados. Especialistas veem a flexibilização, neste momento, como preocupante e inoportuna.

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“Um ano depois da pandemia começar aqui no país, as pessoas ainda não entenderam que a maior fonte de contágio é contato com outras pessoas. Quando você abre qualquer segmento da sociedade, aumenta o número de contatos e vai aumentar o número de infecções. É um princípio básico de doenças infecciosas. Qualquer coisa que reabrir vai aumentar contágio. Por outro lado, nos últimos dois, três dias começou a subir novamente a mobilidade das pessoas. Então, por mais que o governo estadual adote medidas para tentar barrar essa mobilidade, as pessoas começaram a se movimentar”, aponta a professora do Departamento de Estatística e do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),  Suzi Camey, que integra o Comitê de Análise de Dados do governo. 

De acordo com o professor de Odontologia e doutor em Epidemiologia pela UFRGS, Paulo Petry, normalmente quando se cogita uma possibilidade de flexibilização, devem ser analisadas principalmente três variáveis em termos de saúde e epidemiologia: o número de vacinados, o número de casos graves e o número de novos doentes.

“Só quando o número de vacinados aumenta e os outros dois diminuem é que se pode pensar em flexibilização. E nesse sentido vemos que estamos atrasados. Por exemplo, a nossa vacinação tem sido muito lenta, estamos em um ritmo completamente inadequado. Temos poucas vacinas, e o número de casos graves e novos doentes só tem aumentado. Então não é um bom momento para flexibilização”, destaca. 

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Presidente da Sociedade Riograndense de Infectologia (SRGI), Alexandre Schwarzbold também vê o momento como inoportuno para uma flexibilização, uma vez que com a cogestão pode se perder um pouco do controle do acesso das pessoas em áreas que podem gerar aglomeração. Além disso, destaca Alexandre, o esgotamento do sistema de saúde não permite com que se faça a diferença entre as necessidades de cada cidade. 

“Se cada cidade pudesse ter o controle e a regulação do que precisa de leitos e assistência, se cada município pudesse prover a saúde suficientemente para monitorar a sua cidade, talvez a gente pudesse ter uma cogestão”, opina, destacando que as formas de transmissões são iguais em qualquer lugar, mesmo nas cidades com uma densidade populacional pequena. 

Cita como exemplo o caso da região central, onde reside, em que há o hospital universitário de Santa Maria, que para o Sistema Único de Saúde é referência para aproximadamente 50 municípios. “Em função da covid, praticamente toda a região centro-oeste vêm para cá. São cidades com aglomerações diferentes, mas todas elas vêm para os 20 leitos de UTI que se tem aqui. Não é oportuno porque estamos no momento mais crítico de esgotamento de oferta de leitos e de esgotamento dos profissionais”, diz.

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“No esgotamento você está dizendo para as pessoas 'olha aqui não é tão problemático a transmissão porque temos 200 casos, não temos 2.000'. Mas são 200 casos que você potencialmente pode ter 20 pessoas com risco de gravidade (10%), e você que tem uma cidade menor não vai achar leitos”, complementa. 

Sobre a abertura de serviços e comércios não essenciais, entende que vai ser traduzida simbolicamente pela população como um pequeno alívio do sistema de saúde, como se fosse dar conta. “A tradução pela população vai ser, ‘bom, eu posso sair da minha casa, eu que não preciso sair, posso sair, pois não devo estar em risco, porque foi permitido'. O grande impacto vai ser prorrogar o status de saturação do sistema, e com isso provavelmente continuar mantendo taxas de óbitos muito elevadas, uma das mais altas do país, e vamos continuar sendo, porque estamos abrindo em um contexto de esgotamento do sistema”.    

Medidas tomadas tardiamente 

“Vivemos uma tragédia sem precedentes, isso descreve a situação atual, uma situação de verdadeiro caos, um colapso na rede de saúde sem dúvida. Nós já temos casos de pessoas morrendo por falta de atendimento, temos fila de espera para leitos de UTI e isso faz com que as situações clínicas se agravem”, ressalta Petry. . 

Segundo avalia o doutor em epidemiologia, as medidas de circulação devem ser tomadas antecipadamente e preventivamente para que a situação não chegue a um colapso. “Esperamos o sistema de saúde colapsar para tomar medidas. Essas medidas demoram a surtir efeito. Estamos hoje com os hospitais absolutamente lotados, as equipes de atendimento da linha de frente cansadas, extenuadas e a flexibilização pode fazer com que se retorne aumentar o número de casos sem que ainda nós tenhamos tido um alívio na pressão no sistema de saúde”, expõe.    

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Petry destaca também a vacinação como um fator a ser considerado no momento atual. Ele cita o exemplo de países europeus, como Reino Unido e Portugal, que estão vacinando muito mais que o Brasil e que, ao mesmo tempo em que incrementaram a vacinação, promoveram bloqueios de circulação. “Como não temos vacina num quantitativo adequado, flexibilizar é perigosíssimo. O que deveríamos fazer, num cenário ideal, talvez não seja possível em um primeiro momento, é manter a restrição de circulação das pessoas e incrementar a vacinação. Vacinar muito mais gente em um espaço menor de tempo. Essas duas medidas é que se mostraram eficientes”, reforça.  

População precisa de auxílio para ficar em casa

“A gente está pedindo para as pessoas ficarem em casa sem dar nada em troca para elas. Para uma população como a brasileira, em que eu preciso do rendimento do que produzo para comer, mandar ela ficar em casa sem dar esse sustento é inviável”, frisa Suzi.

Em sua avaliação, apesar de na teoria o ideal ser fechar tudo, localmente isso chega em um limite. “A gente não consegue fazer com que as pessoas fiquem em casa, o que é assustador, porque vai aumentar casos, os óbitos. As pessoas ainda não conseguem ter ideia do impacto social dessas mortes. Daqui a pouco as pessoas não vão comprar não é porque o comércio está fechado, é porque tudo isso perde sentido frente a essa quantidade enorme de mortes que estamos vendo”, avalia.  

Pra ela o país deveria ter um pacote muito forte, desde o ano passado, não só para as empresas, mas para as pessoas de um modo geral, levando em conta o grande número de trabalhadores informais. “Deveria ter o apoio emergencial garantido por todo o período da pandemia, não por períodos de tempo. Deveríamos ter entendido que essa situação vai se prolongar indefinidamente, não tem como dizer quando isso vai acabar. Teria de ter medidas de apoio às pessoas e aos empreendedores de um modo geral. É isso que vai permitir que as pessoas fiquem em casa”, comenta.

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Suzi exemplifica que uma mudança ocorrida no sistema de bandeiras foi que no início os serviços domésticos eram proibidos e agora são permitidos na bandeira preta. “Eu permito que as pessoas saiam de suas casas para irem a casa de outras pessoas para fazerem trabalhos domésticos. Isso não deveria ser admitido porque uma pessoa que contrata faxineira, emprega doméstica, jardineiro, segurança, são pessoas que têm condições de bancar essa pessoa para ficar em casa”. 

Na avaliação de Alexandre, o grande problema é que não há, por parte do governo federal, uma sinalização da importância do distanciamento social. “No momento mais crítico, onde o distanciamento é essencial, ele não sinaliza, assim como não sinaliza uma compensação econômica, principalmente para atividades de comércio e serviços, em especial o pequeno comércio”, pontua. 

Para o infectologista, é preciso ter compensação, suporte de financiamento, alargamento de dívidas, um olhar econômico para essa questão problemática nesse momento crítico, "porque a flexibilização exige que tenhamos uma condição favorável para assistir às pessoas”.

Recado à população 

“Hoje estamos cobrando muito dos indivíduos porque não tivemos um claro direcionamento do poder público, do que deveria ser feito. O governo falhou em todos os níveis, principalmente na esfera federal, só que não adianta ficar culpando ele agora, não vai mudar, nós precisamos de resultados para agora. A mensagem é: individualmente cada um tem que fazer a sua parte, e esse individualmente vai usar a máscara, vai manter o distanciamento físico, não vai visitar ninguém, não vai encontrar ninguém”, diz Suzi.

“A outra coisa de fazer a sua parte é apoiar toda a rede que você mantinha com os seus rendimentos: a faxineira, a manicure, o cabeleireiro. Quem tem condições tem que fazer o que o governo não está fazendo, que é apoiar essas pessoas para elas ficarem em casa porque elas não podem trabalhar nesse momento”, sugere a professora. 

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“Esse é o momento mais crítico desde o início da pandemia, e não há outro jeito de controlar a transmissão e o número de mortos se não reduzirmos a mobilidade e a aglomeração de pessoas. A população vai ter que ter a paciência nessas três a quatro semanas críticas, para que a gente consiga reduzir a taxa de transmissão”, finaliza Alexandre. 

“Apelo para que as pessoas evitem se aglomerar. E aglomeração não é somente uma festa de 100 pessoas, mas também é um cafezinho com seis pessoas que não coabitam. As pessoas que podem fiquem em casa, não se aglomerem, usem corretamente a máscara, higienizem as mãos, enquanto a gente fica na expectativa de ter vacina para mais gente”, conclui Petry. 


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Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Marcelo Ferreira