REFLEXÃO

Artigo | Saúde mental na pandemia

Psicanalista avalia impactos mentais da crise sanitária e econômica em um país onde o Estado não cumpre o seu dever

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
"Um abraço apertado num momento de abatimento de alguém que se importa com você e a quem você preza também acalma, recompõe o nosso espírito" - Michel Dantas/ AFP

O que posso comentar que ajude nessa situação que vivemos agora, dessa 2ª onda, desse 2º ano de pandemia mundial?

Começo com algo que parece só descritivo: as pessoas em distanciamento social, que têm alguma infraestrutura para isso, e as pessoas nas ruas, por trabalho, por desamparo social, ou porque creem que a pandemia é uma paranoia construída.

À primeira vista os problemas psicológicos de quem está em distanciamento social parecem ser diferentes de quem não o está fazendo. Mas estamos todos mergulhados...

A situação do vírus, que se deslocou do seu nicho original na cadeia biológica e que veio ocupar os humanos como suporte, agrandando enormemente o espaço que ocupava, significa uma modificação brutal na ordenação do bios no planeta.

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Estamos em um momento crítico da vida na Terra. E é claro que um ser tão pequeno, como o novo coronavírus, se expandir exponencialmente, significa muitas coisas. Já vimos uma alta produtividade de commodities destruídas por pragas incontroláveis ou uma plantação destruída por seres daninhos...

Esses são exemplos de algo muito conhecido e comum: a monocultura de plantas ou de animais, aliada a processos de controle através de venenos químicos e industrializados.

Também, não por acaso, são seres cada vez menores e mais simples os que insistem em proliferar. E constituem indícios dos recursos que a Natureza processa para dar novo start às situações críticas que ameaçam a vida como ela estava se processando até o momento em que intervieram fatores desorganizativos, por assim dizer, que causaram uma crise.

A lógica predatória capitalista não compreende que o sistema do bios funciona em rede, se constitui nas inter-relações entre as espécies. A lógica predatória trabalha pontualmente, visando dividendos econômicos, custe o que custar! E para quem?!!

Esses fatores que chamei amenamente de desorganizativos são uma pesada intervenção de nossa civilização (centralizada no sucesso e no lucro, como valor incontestável, acima de qualquer discussão) na trama que constitui a vida!

Mas voltemos. Foi necessário eu explicar no que estamos, todos nós. Então, essa pressão da situação como a expus recai sobre todos, embora cada um em sua particularidade, é claro!

Os moradores de periferias, os desempregados e os que estão abaixo da linha da pobreza – e que estão aumentando dolorosamente seu número –, sofrem a mesma pressão, porém em condições calamitosas.

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É preciso situar isso que é de todos, pressiona todo o mundo, porque é efeito desta sociedade:

- A situação da pandemia;

- A situação de nossa civilização alienada e alienante, que não dá espaço para a vida e os diferentes seres. Muito menos para a vida humana, porque busca o lucro, que o toma como justo por si mesmo ou o justifica pela necessidade. Nesse caso, será na forma de ganho, com todas as implicações e distorções que a palavra carrega;

Duas grandes e pesadas situações: a humana de nossa sociedade essencialmente de exploração (de recursos e de seres) e a situação do bios na Terra, expressa agora pela pandemia, que é consequência dessa mesma sociedade (uma das muitas...).

Ambas incidem sobre as pessoas, que têm mais ou menos recursos e acesso à estrutura social. Compreender que estamos no mesmo barco dá a consciência de que a resposta para isso terá que tratar de todos. Sem ser assim, não conseguiremos resolver! Pensar apenas em uma das divisões que o acesso diferenciado aos recursos causa é avalizar paliativos.

Sabemos que se o Estado realmente tivesse como objetivo o bem comum, poder-se-ia ter recursos sociais e organizá-los para que mais gente pudesse ter acesso a medidas de proteção, incluindo o distanciamento social.

Sabemos que o distanciamento social se tornou uma estratégia necessária – tanto que entramos na fase roxa e o Governo se viu obrigado a decretar feriados seguidos para reduzir a movimentação necessária ao trabalho e ao comércio –, não porque não existissem recursos técnicos, médicos e outros para tratar da covid-19, mesmo quando ainda não sabíamos muito sobre ele.

Se o Estado no Brasil cumprisse de fato o mandato de responsabilidade com o seu povo e construísse uma saúde pública com cobertura universal como é o projeto do SUS originalmente, enfrentaríamos essa pandemia com outra condição, onde talvez o distanciamento social não fosse tão crucial.

Mesmo com o SUS detonado por falta de recursos, totalmente despedaçado pela privatização, e sem conseguir manter o seu propósito de ser uma cobertura eficiente para a saúde de todos, mesmo assim, o Brasil tem, graças ao SUS, a capacidade de vacinar toda a sua enorme população desse país continental, como muitos países no mundo não têm! Só faltam vacinas suficientes, porque este Governo as boicotou.

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Sem dúvida, existe uma condição penosa própria brasileira com este atual governo capaz de destruir conquistas sociais históricas e também capaz de destruir condições de trabalho, educação, saúde... Funções atribuídas ao Estado na relação com o povo.

Ter elegido uma figura superficial e tão condizente com “resultados” imediatistas a qualquer custo e para poucos tem sido contemplar o puro horror naquilo que ‘nos’ governa... Mas que era uma lógica pré- existente!

O avanço, desde 1500 até hoje, dessas formas sociais históricas para outras cada vez mais concentracionárias e despidas de quaisquer outras veleidades tornou as estruturas dessa sociedade mais predatórias.

Assim, os Estados nacionais expressam também essa concisão no desenho de suas funções, que cada vez mais segue o que interessa ao mercado internacional.

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Quanto a lidar com as consequências psíquicas que tudo isso tem nos causado...

Primeiro que tudo, é necessário ter uma perspectiva que nos dê medida do problema. Vou tratar disso através de um exemplo estreitamente vinculado a essa mesma situação: uma das coisas que mudou radicalmente com a pandemia foi o lugar da internet. Antes, as pessoas usavam o celular predominantemente, acessando as redes virtuais para o lazer e o privado.

Com a pandemia, a internet se tornou o centro das comunicações através da intensificação de formas de trabalho e de transações comerciais. A comunicação virtual é agora o principal meio para todos os intercâmbios, e a sua função se tornou pública, no sentido de se constituir como o campo de relações empresariais, de trabalho, de debates, de divulgação.

Com isso fomos inadvertidamente bombardeados de forma desumana. Porque a internet é uma estrutura diferente de nós, seres vivos. Ela tem um alcance e uma velocidade que não corresponde com a de um ser humano. Ela não descansa, não come, não vai ao banheiro e nem tem outras demandas para fora de seu próprio sistema, como temos nós.

Assim, quando inadvertidamente nos submetemos ao ordenamento próprio desse mundo virtual, quando aceitamos os seus termos que são maquínicos, esses termos serão de não-vivos, e nós, seres vivos, não poderemos suportar.

É preciso recuperar os termos da equação, do ser vivo que eu sou ainda ao manejar a máquina, e não o inverso como temos visto. Não porque quem deve comandar a máquina é o homem!

Os termos precisam considerar a exigência mais complexa numa trama que se auto-sustenta, dentro do mesmo raciocínio de que determinada mata é um eco-sistema saudável porque sustenta uma onça nele, ou que as águas de um rio são boas quanto maior o número de espécies de peixes consegue abrigar...

Assim, os termos entre a virtualidade da internet e o ser humano precisam ser condições que constituem uma rede de colaboração viável para o ser ter espaço, se tornar possível!

Uma observação importantíssima: os seres humanos também funcionam em rede, na trama de relações estabelecidas entre seres, em consonância com o bios, ao qual pertencemos.

Mas, particularmente, a rede específica que movimentamos é a simbólica. Para nós, criar, trocar e partilhar significações sustenta nossa vida e realizamos com isso um papel de criar outra dimensão no mundo. Essa é a dimensão que pode avalizar como sagrada no sentido da sua essencialidade. As ligações existentes entre os seres, que constitui o viver de todos.

Uma maneira crucial para fazermos “caber” o humano nessa nova situação internáutica é o uso de um recorte referencial para lidar com o volume e a intensidade que vem por esse meio maquínico.

Assim, por exemplo, uma pessoa pode escolher um crivo religioso para escutar notícias. Outra pode escolher um crivo de tendência política, de esquerda ou de direita, para a mesma coisa.

O mais importante, mais do que ter consciência da escolha do recorte, é manter a percepção de como ele funciona quando dá a notícia.

Evidente que a moldura, o recorte, o critério que se utilize não funciona para delegar a função da própria pessoa pensar, uma preciosíssima qualidade...

Desde a Bíblia, livro fundacional de nossa civilização, já na criação se estabelece a importância do arbítrio constituindo nossa humanidade. A faculdade de escolher o próprio caminho.

É pertinente compreender que o sistema social estabelece sua moldura de referência, que convém ao seu interesse – que é enquadrar as pessoas de modo que elas aceitem o próprio sistema como única verdade ou como a natureza mesma das coisas. Como o certo, resumidamente. Daí parece óbvio defender o próprio interesse contra os outros, haver concorrência nas relações, e o dinheiro ser valor inconteste. É óbvio! Isso é apenas ser realista!

Essa moldura do sistema propicia um descanso por ser o habitual e não exigir esforço. Por outro lado, se nos submetemos totalmente, mata o livre arbítrio, a possibilidade de pensar e de escolher seu próprio caminho. Perde-se o que cada um pode trazer de enriquecimento para a humanidade.

Mas apresentei como exemplo a internet e a necessidade de um crivo em seu uso, para tratar do que precisamos para enfrentar a pandemia.

No problema da pandemia, também precisamos de uma régua, uma medida que nos devolva o senso de proporção do problema! Que nos faça distinguir em que dimensão transcorre cada parte desse problema complexo.

De modo que a gente não se sinta esmagado, cansado, sem forças, desanimado porque tudo é demais e muito maior do que somos, do que aguentamos.

A percepção é real. O problema é mundial, portanto, maior do que cada um de nós, e pesa de muitas formas demasiado...

Porém, paradoxalmente, é o perceber e sentir tudo que pode nos ajudar.

Para explicar a partir de uma ponta conhecida, é notório que o contato com a natureza nos recompõe as forças. Isso porque o seu contato nos recoloca na rede do bios, sentimos no corpo essa conexão. Com isso recuperamos outro dimensionamento da gente mesmo no mundo.

Um abraço apertado num momento de abatimento de alguém que se importa com você e a quem você também preza acalma, recompõe o nosso espírito. Porque através dele nos sentimos acolhidos, reconectamos com uma rede que nos significa, no seu duplo sentido.

Precisamos desses alimentos do espírito que têm o poder de nos libertar de ser refém de uma circunstância, como se fôssemos uma presa ou vítima.

Como se estivéssemos cravados numa condição inescapável, preponderante. Estar conectado em rede de sustentação nos dá o movimento que a rede possui, não só o nosso. E assim dispõe outro dimensionamento das coisas e do problema.

Para esse ano de 2021, o ano em que todos tomaremos a vacina – isso é necessário, teremos que lutar para que aconteça! –, precisamos nos abrir e arriscar a viver uma qualidade de vida. Sem espera, já no presente.

O sistema social que nos escraviza a partir de nossa própria mente nos faz pensar em apenas sobreviver. Estar vivo é tudo o que se pode desejar! Mas, nesse caso, estar vivo é ser apenas um sobrevivente que corre atrás de seguir sobrevivendo um pouco mais.

Nesse sistema, a escolha de qual vida quero viver não é possível.

E, no entanto, para ser humano integralmente, precisamos poder pensar e escolher. Não no sentido de escolher gozar, escolher o paraíso dos próprios sentidos. Para o paraíso não há necessidade de escolher (e ainda, um paraíso tão pobre...)!

A escolha se refere a algo que não está dado. Ela se refere à situação humana, nos põe com acesso ao que é prerrogativa nossa, o que fazer no mundo, sendo o que somos... Não se enfrenta esse problema ignorando o cansaço e a dor, e tentando eliminá-los porque são parte de nós.

A escolha, nesse caso, é ser tão humano quanto podemos, porque a situação requer esse arco de consideração com todos.

A solidariedade que se requer é essa recuperação da dimensão do mundo que nossa civilização predatória reduziu a um ponto chamado ‘margem de lucro’.

É a recuperação da conexão necessária entre os seres para que nosso próprio espaço exista.

E é a recuperação da dimensão essencial dos significados em trânsito, ao vivo, que constitui nosso horizonte humano!

E essa poderá ser a cura. Não da pandemia, mas dos tormentos e pavores que ela nos trouxe!

 

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Poliana Dallabrida