Rio Grande do Sul

PANDEMIA

“Se tu faz sabendo, aí é genocídio”, desabafa profissional de saúde pública do RS

Em depoimento ao BdF, profissional responsabiliza governos estadual e federal pela explosão de mortes por covid-19

Brasil de Fato | Porto Alegre |
“Os governantes estão em negação. Não são burros. Só vão para [de negar] quando tiver caminhão de morto. O sistema ainda está colapsado. Mais de 80% da UTI ocupada já é colapsado”, avalia profissional da saúde - Sérgio Lima / AFP

Porto Alegre figura no jornal estadunidense New York Times como provável epicentro mundial da pandemia por seus gestores pensarem mais em economia. O neurocirurgião Miguel Nicolelis alerta para uma tragédia ainda maior na capital gaúcha: corpos poderão começar a ser jogados na rua por causa da falência dos sistemas de saúde e funerário.

Se esses apagões não servem para dar conta da tragédia que se abate sobre o povo gaúcho e sensibilizar a população a se proteger, o depoimento de um(a) importante e experiente profissional do serviço público de saúde do Rio Grande do Sul carrega um gestor público de responsabilidade.

Com a condição de não ter seu nome, sua função e nem seu gênero revelados, essa pessoa ouvida pela reportagem do Brasil de Fato RS, aponta o dedo para o governador Eduardo Leite. Ele seria o responsável direto por um terceiro apagão: o de administração pública.

A entrevista, concedida por telefone na tarde da sexta-feira (26), teve o tom de desabafo. O(a) profissional de saúde pública com experiência em epidemiologia conversou desde uma cidade do interior do estado. Contou que mantém contato com colegas cientistas que participam de reuniões diretamente no gabinete do governador Eduardo Leite e reclamam de serem ignorados.

E talvez o pior: seus nomes, seus planos e suas publicações técnicas estão sendo usados para dar uma sustentação científica ao Distanciamento Controlado, quando, na verdade, as decisões são imperiais. As decisões palacianas tomadas sobre o Distanciamento Controlado, segundo esta fonte, levam em consideração mais os interesses econômicos e políticos do governador e de grandes empresários do que propriamente da população gaúcha.

O(a) profissional entrevistado(a) não atua diretamente no front da área de saúde. Está mais ligado(a) à área sistêmica, de controle. Suas atividades diárias são menos complicadas como costuma dizer, mas não menos tristes. Em seu setor, repercutem histórias de profissionais de saúde, de famílias e de governo.

“Está morrendo gente nas Unidades de Pronto Atendimento. Não tem tempo de levar a pessoa para um hospital ou para uma UTI. A morte pela covid é como estar se afogando. A pessoa chega e fica dois, três, cinco dias e não tem para onde correr. Morre mesmo. É cruel”, descreve.

O colapso do sistema torna os casos mais corriqueiros uma sentença de morte. O que mais mata as pessoas, segundo o(a) profissional de saúde, é o câncer, doenças cardíacas e as causas externas, como o homicídio, o acidente, como o atropelamento. “Não tem onde colocar esses casos”, conta.

Efeitos da bandeira preta são lentos

Basta pensar com lógica para perceber que algumas variáveis levaram à soma de tragédias. Não há vacinas para todos nestes primeiros meses. O coronavírus tem sofrido mutações que podem ser capazes de tornar a cepa de Manaus ainda mais infecciosa no Rio Grande do Sul.

Há quem não respeite as indicações de uso de máscaras e continue se aglomerando em festas. Mas há também um fator que deixa o(a) profissional de saúde pública indignado(a), a ponto de chamar a conversa com a reportagem de “um desabafo”.

“Ninguém faz nada. A bandeira preta reduz os casos, mas é lenta. As UTIs estão lotadas. Tem gente morrendo no pronto atendimento e o governador joga nas costas dos municípios a responsabilidade por fiscalizar. Nenhum município tem como fiscalizar se os salões de beleza estão ou não cumprindo a regra de atendimento reduzido”, salienta.

"As pessoas estão loucas"

Quando o(a) profissional de saúde fala que “as pessoas estão loucas”, ele(a) aponta indiretamente para quem é administrador público. O colapso no sistema de saúde pública do Rio Grande do Sul já era realidade quando 50% de UTIs estavam ocupadas ainda no ano passado. E nenhuma medida restritiva de circulação de pessoas, como a de final de fevereiro com a bandeira preta e o fim da cogestão, foi tomada.

Vamos precisar conversar sobre mais duas varáveis, apontadas pela fonte desta matéria. Uma delas é a falta de insumos, como respiradores e medicamentos.

A outra é a ausência de pessoal qualificado para intubar um paciente. O(a) profissional de saúde – médicos(as), enfermeiros(as) – nem sempre são treinados para intubar um paciente. Com a crise, estão aprendendo “na marra”.

“Pior é o desgaste emocional do profissional de saúde. Tem enfermeiro que se trancou no banheiro do hospital e não queria sair. Não tem respirador nem como sedar o paciente para colocar no oxigênio. Mesmo no Pronto Atendimento, não tem como ser atendido”, acrescenta.

"A cepa de Manaus é muito infecciosa"

O(a) profissional de saúde revela que o alerta nos postos de atendimento e hospitais para alguma coisa diferente começou em janeiro. Artigos científicos demonstravam provável alastramento acelerado daquela que ficou conhecida como cepa de Manaus.

“A partir de fevereiro, entrou essa cepa de Manaus. Muito provável que ela tenha entrado em janeiro. Ela ficou predominante em um mês. Essa cepa é muito infecciosa. Muita gente se infecta, e uns 15% precisam de hospital”, diz.

“O nome disso é covarde”

Agora vamos ao desabafo direcionado àqueles que deveriam ter coragem para enfrentar o coronavírus e contrariar interesses econômicos e pessoais. É claro que a economia interessa, mas vamos ao raciocínio lógico para termos uma noção de perda de tempo.

O governador do estado decretou a bandeira preta em 27 de fevereiro. Menos de um mês depois, chegou a liberar a presença de pessoas em cultos religiosos.

Na segunda-feira (29), dados da Secretaria Estadual de Saúde mostravam que a infecção e o coronavírus ainda estão bem ativos no Estado. A atualização das 13h40 do domingo (28), confirmava 830.630 novos casos de covid-19, 18.823 óbitos e 104% de ocupação de leitos de UTI no RS (acesse os dados aqui).

Na sexta-feira (26), Eduardo Leite e o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, bateram cabeça. O primeiro havia restringido a abertura do comércio em todo o estado. Melo entrou com liminar na Justiça para abrir. O resultado foi uma confusão em Porto Alegre que pôde ser medida pela abertura parcial do comércio no centro da cidade.

Leite tem se empenhado em temas que não seriam os mais prioritários quando estamos vivendo a pior pandemia da história. O governador trabalhou bastante nas últimas semanas para aprovar a PEC 280/2019 por 9 votos a 3, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), na Assembleia Legislativa na terça-feira (23), e suspender o plebiscito para a venda do Banrisul, Procergs e Corsan.

E já é notícia nacional que seu nome está sendo cogitado em seu partido, o PSDB, como candidato a presidente nas eleições do ano que vem.

“Se tivesse um lockdown de janeiro para março, a gente conseguiria respirar um pouco. Mas não faz, botando a responsabilidade do município fiscalizar”, assevera a fonte.

Para ilustrar o que chama de “covardia” do governador Eduardo Leite, o(a) profissional de saúde faz uma analogia sobre os motivos de as pessoas não respeitarem as medidas de segurança e frequentar festas e aglomerações.

“É o mesmo que dizer para o teu filho que ele pode jogar videogame à noite toda e depois tentar proibir. O nome disso é covarde. Ele [governador] fica em cima do muro. Não se pode acender uma vela para deus e outra para o diabo”, lamenta.

De fato, Leite já deveria ter feito um ou dois lockdowns. Emitir decretos para dar cor a bandeiras do Distanciamento Controlado e em dois dias mudar resoluções, abrindo esse ou aquele setor ou modificando cogestão, tem se revelado um erro crítico.

“Agora, querem liberar a Páscoa. Muito inadequado o momento que eles escolheram”, diz o(a) profissional de saúde pública.

"Só vão parar quando tiver caminhão de morto"

Voltando ao início desta matéria, mais precisamente ao depoimento do neurocientista Miguel Nicolelis ao Tutameia (assista aqui a partir de 25min50seg) quando ele fez a previsão de que haveria em breve gente morta nas ruas de Porto Alegre, encontramos uma tétrica convergência de opiniões. A fonte desta matéria fez previsão semelhante antes da entrevista de Nicolelis ir ao ar no youtube.

A sua crítica inclui o negacionismo de Jair Bolsonaro. A novidade é que Eduardo Leite está no mesmo patamar, apenas conseguiria disfarçar melhor seus erros. “Os governantes estão em negação. Não são burros. Só vão para [de negar] quando tiver caminhão de morto. O sistema ainda está colapsado. Mais de 80% da UTI ocupada já é colapsado”, conta.

O que deveria ser feito

Um governador de estado na crise da pandemia deveria ter agido de forma mais incisiva. Lockdowns já deveriam ter sido feitos, como mencionou nosso(a) entrevistado(a) mais acima. Campanhas de esclarecimento pelas redes sociais, rádio e TV ajudariam a sensibilizar médicos e a população dos riscos e a se proteger.

Podemos dizer de tudo isso que faltou liderança? Pior, segundo o(a) profissional de saúde pública entrevistado(a). “Nunca vi ignorarem uma doença respiratória. Não controlaram o aparecimento dela. O que eles querem? A grande habilidade deles é dar o tapa e esconder a mão. São amorais”, sentencia.

O problema ainda é que o(a) profissional de saúde pública vê nas fake news, que promovem uso de medicamentos ineficazes para combater o vírus como a hidroxicloroquina, como mais uma variável a explicar a tragédia. “Tem médico dando hidroxicloroquina. Nebulizando hidroxicloroquina. Médico não é acostumado a não ter o que fazer”, diz.

Fica difícil, diante do quadro desenhado por um(a) profissional de saúde pública que conhece epidemias e que tem larga experiência de combate em campo, pensar que tudo pode melhorar nesta ou nas duas ou três semanas seguintes.

A síntese é dolorida. Mudam-se as cores do estado sob a forma de bandeiras, sem pensar que o vírus é daltônico, desconhece as cores. “Se tu faz por ignorância, é erro. Se tu faz sabendo, aí é genocídio”, sentencia o(a) profissional de saúde pública.


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Edição: Katia Marko