Coluna

Um genocídio em julgamento: o governo no “banco dos réus”

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O genocídio se dá também ao suprimir as condições necessárias à vida e às condições à saúde
O genocídio se dá também ao suprimir as condições necessárias à vida e às condições à saúde - Foto: Norma Odara
Que os povos civilizados tenham sempre em mente que países não podem ser governados por delirantes

*Marilia Lomanto Veloso

 

Não, não é no Brasil o julgamento de que estamos falando. Ainda que por aqui um “delirante” esteja conduzindo o povo à morte por crueldade patológica na ausência de ações de combate à pandemia, a nação sob controle de Jair Bolsonaro e de sua fileira fardada e civil está distante de tornar concreto esse ato político que resgata a dor de um povo. Nem é agora o tempo em que aconteceu. Foi em 03 de junho de 1921, na Comarca de Berlim, na Alemanha.

O fato não era genocídio, mas um homicídio. O réu, Salomon Teiliran, não praticou qualquer crime contra a humanidade. O estudante armênio de 21 anos, disparou um tiro fatal contra Talaat Paxá, o ex-ministro do Interior da Turquia, a quem a história aponta como um dos responsáveis pelo genocídio da população armênia (mais de um milhão e meio), entre 1915 e 1918, “planejado e executado pelo governo dos chamados Jovens Nacionalistas Turcos”, (Varujan Burmaian. Um homicídio em julgamento: O Processo Talaat Paxá na República de Weimar Sociedade para os Povos Ameaçados. Paz e Terra. 1994).

Paulo Sérgio Pinheiro, em prefácio da obra citada, expressa que “não se trata de celebrar a violência configurada no assassinato de um tirano por um oprimido”, mas do acesso à vida de Salomon, “que inunda de claridade o massacre de uma nação. Sua biografia, seus atos rasgam a penumbra imposta à história do povo armênio.”

Os crimes de genocídio ainda não positivados pelo direito internacional vão a julgamento. Armin T Wegner, também em Introito do Livro, considera que Salomon Teiliran “não é apenas um símbolo, mas um átomo no qual se condensa a dor de toda uma raça maltratada que realiza sua vingança num ato desesperado de legitima defesa”.

O Brasil experimenta um morticínio que assusta o mundo e constitui uma ameaça concreta ao planeta. Jair Bolsonaro pode ser incluído, sem erro, como um “delirante” que não consegue governar, nem manejar a urgente coordenação de um Plano de combate à pandemia.

Para além de uma inteligência que não sobe um milímetro do chão, o homem do Planalto conseguiu “ajuntar” no seu (des)governo bestial um enxurro “estrelado” e civil que não se cansa de causar constrangimento, desde rasgos de asnice diplomática a logros de informação que desonram o Brasil perante a comunidade internacional.

Cenas de “massacre” a exemplo do povo armênio e dos judeus, recontadas pela história, romperam a linha dos diversos espaços territoriais, revelando ao mundo as crueldades dos genocidas.

O Brasil terá de também recontar a história de um tempo em que pranteou sobre túmulos, não por guerra, mas por uma pandemia que foi objeto de escárnio e de descuido de uma “aparição de homem” que se elegeu através de processos ardilosos onde acordos de desrespeito ao Texto Constitucional demitiram o Pacto Constituinte.

Descendo à masmorra onde reside o bas-fond da avidez pelo poder, tais “pactos coloniais”, visando projetos subjetivos e de interesse estrangeiro, deixaram como produto final o governo Bolsonaro, o desastre político sem precedentes nos palcos do poder central do Brasil.

Jair Bolsonaro agudizou sua inapetência para a condição de “ser humano” com a chegada da pandemia. O descontrole do governo federal no enfrentamento com a covid 19 sinaliza prognósticos assustadores pela real possibilidade de contaminação primeiro, da América do Sul, em sequência, o cenário dramático de transmissão para o resto do planeta.

Enquanto o mundo trata de investir nos protocolos que garantam a contenção, a mitigação e a supressão do surto, o Brasil insiste em negar a letalidade do vírus.

E não se confina unicamente em discursos reles, afirmações charlatãs, mas transita por exercícios doentios de desvalor da crise, através de ações concretas que travam medidas sanitárias, obstruem e retardam a compra de vacinas, ocultam informações sobre a gravidade do vírus, ameaçam gestores que adotam políticas para salvar vidas, usam o dinheiro público para fabricar e distribuir pacotes medicamentosos de comprovada ineficácia contra a doença.

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Jair Bolsonaro incorpora uma conduta “desviante” (criminosa) quando dispara o caos, provoca o aumento do número de mortes, espalha a dúvida sobre procedimentos indicados pela comunidade cientifica e pela experiência dos países que conseguem frenar o avanço da pandemia, adotando o mais garantido remédio, a vacina, universo que o Brasil é o maior exemplo de eficiência. E ainda abre espaços para a mão erguida do mundo contra nosso país e brasileiros em seus territórios.

Esse modo contrário à ciência, robustecido pela insensatez e a ausência da centralidade no comando do enfrentamento da grave crise sanitária não só adoece, como também, está matando pessoas.

Encarado como psicopata (ou condutopata), Jair Bolsonaro tem sido “batizado” de genocida ou de ser um governo genocida. E sua reação é a de perseguir quem assim procede, dando fôlego à rigidez cadavérica da Lei de Segurança Nacional para retorquir, na tentativa de “calar a boca” de quem fala e seu discurso produz uma crítica sobre as ações do homem na presidência.

Gustavo Ferreira Santos, professor de direito constitucional, lembra que “a liberdade de expressão, como direito fundamental, traz a proteção da crítica ao poder em seu núcleo”, aponta o conteúdo da Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão (art. 108), do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, ancorando “maior escrutínio” (análise, investigação) das palavras e atos de quem exerce função pública.

Afinal, o que é genocídio? Conceituar essa expressão parece não ser confortável para os países que vivem a fomentar e praticar guerras que exterminam pessoas, nações, por interesses de ampliar seu poder. Mas as palavras devem ser contextualizadas, andar no e com o tempo.

O termo foi gestado no século XX, o século XXI exige ressignificação. Dayse Ventura, professora de Ética e Coordenadora do Doutorado em Saúde Global e Sustentabilidade da USP, inspira reflexões sobre o conceito desse “crime sem nome” como expressou Winston Churchill, em 1943, com as denúncias das práticas nazistas. Aponta o artigo do jurista polonês, Raphael Lemkin, para quem genocídio seria a “destruição de uma nação ou grupo étnico”.

No Brasil, lembra a pesquisadora, o genocídio é tipificado na Lei 2.889, de 1º/10/1956, como a “intenção de destruir no todo ou em parte um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, referindo-se a “matar membros do grupo, causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo, submeter o grupo ou membros do grupo a condições de existência capaz de ocasionar a destruição física total ou parcial, assim como adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo e efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo".

Para Daisy Ventura, “estamos agora diante de indícios muito significativos de que existe um genocídio em curso no Brasil”, sinalizando a hipótese do crime de extermínio, (art. 7o, letra b, do Estatuto de Roma), um crime contra a humanidade no que se refere à “população em geral”.

Em sua avaliação, o Governo federal assumiu sempre o negacionismo quanto à doença, adotando medidas aflitivas contra governadores que atuam no sentido de efetivar políticas de controle e propagação da covid 19. Além dos vetos presidenciais fluírem contra a saúde pública, utilizam um discurso que incita a população a desacreditar da gravidade do vírus e a não se proteger como deve.

De acordo com a professora da USP, “genocídio não é só colocar pessoas num paredão (ou numa câmara de gás) e fuzilar as pessoas. O genocídio se dá também ao suprimir as condições necessárias à vida e às condições à saúde”. Também se define por “Causar lesão grave física ou mental a membros do grupo”.

A pandemia acentua as desigualdades sociais, regionais, colocando em maior risco parcela da população que concentra a pobreza e sofre o descaso das autoridades em enxergar de modo igual o mesmo povo. Estudos confirmam que a pandemia atinge mais as populações negras, pobres e vulneráveis, a exemplo de idosos e dos que têm comorbidades.

Para a professora, ao “submeter o grupo a condições de existência capazes de ocasionar a destruição física parcial ou total” está mais do que claro a existência de “todos os elementos necessários à tipificação de crimes contra a humanidade na resposta do Governo brasileiro à covid-19: intenção, plano e ataque sistemático.” Desse modo “[...] é preciso investigar a acusação de genocídio com relação ao presidente do Brasil.”

Jair Bolsonaro é um “invento” saído da artimanha político jurídica de uma Operação indecorosa, um “aparato” da extrema direita indiferente ao sofrimento alheio, de conduta política funesta e inabilidade estrutural para o mandato popular no mais alto e nobre cargo de comando do país.

A Armênia, com um só projetil, deflagrado pela narrativa carregada de luto de Salomon, conseguiu trazer para o julgamento, não o jovem que puxou o gatilho, mas uma tragédia que massacrou um povo inteiro.

O Brasil precisa colocar no “banco dos réus” o protagonista que consegue sepultar, em uma crise sanitária, mais de 300 mil corpos, enlutar milhares de famílias, destituir o país da dignidade política, fazer ruírem marcos civilizatórios que a história da nossa ancestralidade legou às gerações presentes e futuras.

Isso é genocídio. E quem assim age é genocida.

* Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, mestra e doutora em Direito Penal, professora aposentada da UEFS, promotora de Justiça da Bahia, aposentada, presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos, membro do CDH da OAB/BA, da AATR, da RENAP e da ABJD.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante