Coluna

O presidencialismo de colisão

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Bolsonaro aproveitou a inevitável queda do chanceler Ernesto Araújo para mexer em seis ministérios, entre eles o Ministério da Defesa - Evaristo Sa/AFP
O maior obstáculo para combater a pandemia é o próprio Bolsonaro

Olá,

Enquanto todos falavam em golpe de Estado, Bolsonaro estava arrumando a própria bagunça, discutindo a relação com os militares e fazendo afagos no centrão. Porque, no fim de contas, o importante é salvar a própria família.

1. Cheiro de coturno queimado. Desde os primeiros dias deste governo instaurou-se uma polêmica: as mentiras, barbaridades e ameaças de Bolsonaro deveriam ser levadas à sério ou fariam parte de um método racional para confundir os adversários? Passados dois anos, continuamos no mesmo dilema. O retorno da narrativa golpista parece ter vindo na esteira da morte do policial militar Wesley Soares Góes em Salvador (BA), no domingo (28), que foi instrumentalizada pelos bolsonaristas para convocar uma rebelião de policiais.

Apesar de ter ficado no nível do discurso e rendido um pedido de cassação da deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-SP), a tese de que um golpe estaria em andamento seguiu um rastilho de pólvora quando, no dia seguinte, Bolsonaro aproveitou a inevitável queda do chanceler Ernesto Araújo para mexer em seis ministérios. Em especial, a renúncia do Ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. Considerado um moderado e exonerado às vésperas do aniversário do golpe de 64  - que os militares chamam de sua “revolução” - a saída gerou um leque de especulações.

Sem citar fontes, Ricardo Kotscho afirmou que Azevedo e Silva teria se negado a decretar o Estado de Sítio solicitado por Bolsonaro e por isso foi demitido. Outros, como Rogério Maestri no Brasil 247, sugeriram que o golpe viria através da mobilização das polícias militares contra os governadores. A versão de que estava em andamento um auto-golpe de Bolsonaro ganhou inclusive a adesão de alguns membros do establishment político e jurídico e foi reforçada no dia seguinte pela demissão conjunta dos comandantes do exército, marinha e aeronáutica.

Assim, quem já sentia cheiro de fumaça viu fogo quando o deputado major Vitor Hugo (PSL - GO) propôs a votação de um projeto de lei que pretendia incluir a pandemia como condição suficiente para a decretação de mobilização nacional, onde o presidente da República teria poderes extraordinários. No entanto,  a urgência do  projeto foi rejeitada pela Câmara e não entrou em pauta. E enquanto o mundo político estava em polvorosa, o mercado financeiro não parecia muito preocupado com o tal golpe de Bolsonaro, com valorização do Real e a Bovespa fechando o dia em alta.

2.O paredão da semana. Ninguém duvida dos anseios golpistas de Bolsonaro e seus seguidores. Assim como ninguém deveria esperar uma reforma ministerial “normal” neste governo. A questão é saber em que sentido ela aponta. Neste caso, o tamanho do barulho contrasta com a pequena abrangência das mudanças ocorridas. Só entraram no governo três novas figuras: a deputada federal Flávia Arruda (PL-DF), o delegado da PF Anderson Torres e o diplomata Carlos Alberto Franco França, e nenhum deles tem grande peso político.

Ministros pífios como Ricardo Salles, do Meio Ambiente, Milton Ribeiro, da Educação, e Damares Alves, dos Direitos Humanos - todos identificados com o bolsonarismo e com os evangélicos - foram poupados. Para José Luís Fiori, a troca de ministros foi tanto um sinal de fraqueza quanto um erro de avaliação política, com o governo saindo ainda mais fragilizado. A confusão de informações também ajudou a esconder o absoluto fracasso de Ernesto Araújo à frente do ministério das Relações Exteriores.

Nessa área, a indicação de Carlos França, um diplomata de pouca expressão, pode até melhorar a relação com a China, mas continuará sustentando pautas conservadoras e o alinhamento com Estados Unidos e Israel. Para Valério Arcary, a reforma ministerial foi um recuo com rearranjos entre as diferentes alas do governo.

A nomeação de Flávia Arruda (PL-DF) para a Secretaria de Governo busca apaziguar o centrão e a ala ultraliberal. Porém permanece a dúvida se isso será suficiente para aplacar a fome do centrão por recursos e poder. Já o deslocamento do general Braga Netto para o Ministério da Defesa tenta melhorar o alinhamento com a ala militar.

É provável também que Bolsonaro esteja olhando para a política e para a guerra, como argumenta Igor Felippe Santos. Neste caso, a indicação de Anderson Torres, amigo da família, para o Ministério da Justiça, e o retorno do aliado André Mendonça, candidato a uma vaga no STF, para a Advocacia Geral da União mostram que Bolsonaro coloca em posições-chave pessoas de confiança, talvez de olho em futuros embates políticos e jurídicos.

3. A DR que abalou o Brasil. É verdade que a relação entre Bolsonaro e os militares já vinha sofrendo desgastes. Generais como Azevedo e Silva e Pujol estavam cansados de ver as forças armadas associadas à má gestão no combate à pandemia, cujo incompetente n.º1 era o General Pazuello.

Já Bolsonaro estava incomodado com a ausência de uma militância mais engajada dos generais, como no tema da recuperação dos direitos políticos de Lula. Tanto que alguns generais já eram acusados de comunistas nas redes bolsonaristas. Além disso, as políticas adotadas nas Forças Armadas para conter a pandemia são completamente opostas àquelas defendidas publicamente por Bolsonaro.

Mas ao contrário do que se especulou inicialmente, a demissão de alguns comandantes não sinaliza um afastamento dos militares do governo. Como resume Ana Penido, no Brasil de Fato, Bolsonaro aproveitou o momento para reacomodar interesses, arrumar a casa e manter um núcleo fiel de militares em postos-chaves: os generais Braga Netto, Ramos e Heleno.

Sem eles, nem Bolsonaro nem o bolsonarismo conseguem sobreviver. Não foi à toa que Bolsonaro contou à sua base nas redes sociais que estava tudo bem: o maléfico centrão é que teria pedido cargos. E, nomear novos ministros seguindo o critério da antiguidade acalmou parte da incomodação gerada nos quartéis. O que vem agora? Provavelmente nada.

Para desembarcar do governo, a ala descontente precisaria admitir que fez parte dele e a outra ala, cerca de 6.000 militares com cargos, não está pensando em largar a mamata de gratificação, picanha e cerveja. É verdade que o novo comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, é defensor do lockdown e dos procedimentos “cientifícos”, leia-se sem cloroquina, o que pode ser sinal de novos atritos adiante.

Por via das dúvidas, Bolsonaro deve reforçar sua influência entre os policiais. Na oposição, a crise animou uma direita gourmet, na análise de Valter Pomar, que pede até golpe militar para acabar com o governo militar. E serviu como pretexto para a turma do segundo pelotão na corrida presidencial produzir um manifesto assinado por Ciro Gomes e cinco ex-eleitores de Bolsonaro. A crise produziu ainda mais um pedido de impeachment pela oposição.

4. Ou o Teto ou Morte. Não foram apenas as casernas e o Itamaraty que estiveram em chamas esta semana. No ministério da Economia, por conta da discussão do orçamento para 2021 aprovado pelo Congresso, quase houve uma debandada. O orçamento aumenta as emendas parlamentares e diminui os recursos destinados a despesas obrigatórias. O impasse é simples: a fidelidade do centrão ao governo passa pelo acesso a recursos públicos, mas isso coloca em risco o sagradíssimo princípio do teto de gastos defendido pelo mercado.

Frente a esse impasse, a equipe de Guedes fica do lado do mercado, e teme ser responsabilizada legalmente pelo aumento de gastos, principalmente depois que o TCU ligou o sinal de alerta. A proposta do Ministério da Economia era ou cortar despesas obrigatórias - em torno de R$40 bilhões - ou reduzir as emendas parlamentares. Guedes chegou a pedir para Bolsonaro vetar a proposta, alertando que sua aprovação poderia torná-lo alvo de um processo de impeachment.

A pressão sobre o Congresso funcionou em parte, pois o relator do orçamento, o senador Marcio Bittar (MDB-AC), concordou em devolver 10 bilhões de emendas para o governo federal. No entanto, Guedes achou pouco e segue pedindo novos cortes, sendo acusado por Arthur Lira de terrorismo.

As duas possibilidades para solucionar o impasse seriam o veto parcial ou a sanção de Bolsonaro, mas em ambos os casos teriam que vir acompanhados do envio de novos projetos ao Congresso para recompor o valor das despesas obrigatórias. Já um veto total de Bolsonaro seria entendido como uma afronta ao Congresso e ao centrão que já pressiona pela saída de Guedes.

Curiosamente, parte do problema do orçamento se deve ao aumento da inflação causada pela política de desvalorização do Real produzida pela equipe de Guedes. Aliás, temos a segunda maior inflação do mundo, digna de um país que está entre as dez piores economias do continente.

Ainda assim, as declarações de amor e fidelidade ao teto de gastos não são mais suficientes para garantir a confiança do mercado ou desfazer arrependimentos com a aventura Bolsonaro/Guedes, pois a recuperação dos direitos políticos de Lula mexeu com antigos sentimentos de uma parte da turma da Faria Lima.

5. Zé Gotinha S/A. Tomado isoladamente, tem algo de cômico no episódio em que empresários mineiros foram vítimas de um golpe, tomando uma vacina falsa, quando achavam que estavam furando a fila da vacinação. Mas no contexto geral, independente dos enganados pela golpista, temos um exemplo de como as elites pretendem sair da pandemia e da crise que elas geraram com a eleição de Bolsonaro: cada um por si e ninguém por todos.

Dois bolsonaristas fiéis, Carlos Wizard e Luciano Hang, estão por trás de um forte lobby que propõe um gigantesco fura-fila para os funcionários de suas próprias empresas. Os empresários propõem doar 10 milhões de doses para o SUS, desde que possam comprar vacinas para imunizar nas suas empresas sem respeitar a lei que exige 100% de doação para o sistema público.

A proposta não tem o apoio do presidente do Senado Rodrigo Pacheco, mas ganhou a militância de Arthur Lira e de Paulo Guedes, que sugeriu que os empresários ganhem isenções como contrapartida. Apesar do apoio de Lira, o projeto da vacinação particular encontra resistência no Congresso e também no judiciário.

A Justiça Federal em Brasília considerou a lei das doações inconstitucional e, ao contrário do que queriam os empresários, a interpretação é de que só pode haver vacina particular depois que todos os grupos prioritários forem vacinados. A decisão não é definitiva e ainda cabe recurso.

Enquanto isso, no ministério da Saúde, mudou o ministro mas não a política. A origem do desânimo dos servidores do ministério está na consciência de que o maior obstáculo para combater a pandemia é o próprio Bolsonaro. O país continua fora das principais articulações internacionais contra a pandemia, fechando programas sociais como o Farmácia Popular, pagando youtubers para propagandear remédio para piolho e verme como tratamento precoce e maquiando os dados.

Com o colapso e caos se generalizando, já há quem discuta os critérios para quem deve receber atendimento na competição por leitos de UTI. E no plano internacional, Bolívia, Chile e Peru impõem novas restrições à entrada de brasileiros devido à pandemia

6. Ponto Final: nossas recomendações.

.Dois anos depois, 10 teses e 10 mitos sobre as forças armadas e Bolsonaro. Neste momento, vale reler o artigo Ana Penido e Mariana da Gama Janot sobre os mitos na relação carnal entre o alto oficialato e Bolsonaro.

.'Bolsonaro está dando ao Brasil um novo passado'. Em entrevista ao Intercept, o historiador Michel Gherman demonstra como os símbolos do Nazismo de Israel coexistem no bolsonarismo.

.Cinco filmes e livros para ajudar a entender a ditadura militar no Brasil. Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça. Aproveitando o 57º aniversário do golpe de 1964, no Brasil de Fato, Catarina Barbosa sugere livros e filmes sobre a ditadura brasileira. 

."A ditadura militar foi um celeiro de corrupção", afirma pesquisador. Em entrevista ao Uol Notícias, o historiador Pedro Henrique de Campos fala sobre as relações íntimas entre as grandes empreiteiras e os militares durante a ditadura.

.Não é amor, é trabalho não pago. Coordenador do Instituto Tricontinental, Vijay Prashed escreve sobre como o trabalho doméstico não remunerado se tornou um fardo ainda maior para as mulheres com a pandemia e a austeridade econômica.

.5 livros para uma releitura feminista do direito das famílias. A defensora pública Elisa Cruz indica livros que criticam o teor patriarcal do Código Civil brasileiro, introduzindo perspectivas feministas, negras e LGBTI.

.Um monumento levantado. A Enciclopédia negra de Flávio Gomes, Lilia Schwarcz e Jaime Lauriano recuperam a trajetória de 550 personagens que marcaram o país. 
 

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O Boletim Ponto é uma publicação do Brasil de Fato. Editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile.

Edição: Poliana Dallabrida